2005/02/19

Play it again, Sam...

Era uma vez...
Um homem... Não, não era bem um homem, nem uma mulher... (Não, não era o José Castelo Branco...)
Ok, vamos recomeçar... Rebobina.. Agora no Play... Play it again... Já está! Sim, podes tocar o genérico...

Genérico

Era uma vez um rapaz. Era um rapaz como todos os outros... Ou talvez não... Atinado, "incapaz de partir um copo", ou talvez não...
Gostava da noite... Não da noite dos martelos, das luzes psicadélicas estonteantes, dos copos, das bebedeiras, dos porteiros mal-encarados de discotecas, que fazem o ambiente de um sítio com as suas duas palavras mágicas "Consumo mínimo"...
Gostava da noite pura, de vaguear pela noite do céu escuro, das estrelas, da tremulina no rio da cidade que amava...
Gostava de música, das noites tranquilas de uma coisa parecida com Jazz mas que não era Jazz, intervaladas por um copo da sua bebida preferida, que por acaso até era Bacardi Lemon, mas poderia ser qualquer outra... (Até porque o Bacardi devia ser consentâneo com salsa e não com jazz, mas enfim, a história é minha, posso fazer dela o que quiser...)
Gostava muito de tocar música. Neste caso particular (para martírio dos vizinhos de baixo), decidiu tornar-se percussionista de pianos, que é como quem diz, pianista...
A sua área era o improviso, desde que decidiu começar a improvisar num bar, para ganhar a vida... O certo é que, percutisse o que percutisse, percutia com a alma... Como se a música fosse o espaço para as palavras que nunca dizia...
Sim, este rapaz era muito tímido. Podia parecer muito extrovertido, mas quem lhe quisesse arrancar uma só palavra que fosse sobre o seu estado de espírito, ou, mais dificil ainda, sobre os seus sentimentos em relação a algo ou alguém, poderia esperar sentado (a)... (De preferência numa poltrona, que para esperar algumas eternidades é preciso conforto...)
A sua música parecia ter um efeito mágico sobre certos casais... Vários houve que se beijaram pela primeira vez ao ouvi-lo. Isso não significa que tivesse encontrado em algum tempo uma princesa encantada. Antes pelo contrário. Como extremamente tímido que era, era extremamente platónico. E como extremamente platónico, ficava extremamente abatido quando levava uma "tampa"... Nem que fosse uma "pseudotampa", daquelas "pseudotampas" ligeiras do estilo "Gosto muito de ti mas quero-te só como amigo... enquanto faço trinta por uma linha com o satânico do meu colega que tem um corpo muito melhor que o teu mas não dá uma para a caixa...", que doem (e por vezes até fazem sofrer mais) do que as tampas verdadeiras...

O facto de não ter encontrado a princesa encantada, e ter o coração marcado por cicatrizes afectivas sem que alguém, a não ser ele próprio, lhe tivesse espetado facas, enquanto servia de "casamenteiro" com a sua música, tinha um efeito ambivalente nele, no sentido psicanalítico da questão... Daí que ele se tivesse passado a apelidar de Sam... Não por se chamar Samuel ou ter algum nome aparentado com esse, mas devido à expressão do filme Casablanca, em que o par amoroso recém formado pede "Play it again, Sam"...

I

Foi então que um dia ele a viu. Ela acabara de se empregar naquele bar.
Desta vez, ela era mesmo linda! Mais linda do que a mais linda das pessoas por quem anteriormente se tinha apaixonado... Mais bela do que o suprassumo da beleza, mais charmosa do que o charme - o próprio adjectivo...
Era cantora. Viera de outra cidade, e a sua voz fazia Sam sair do sério... De cada vez que cantava, fazia os anjos caírem do céu.
Tornaram-se amigos. Ela explicou-lhe como tinha vindo do campo, onde os pais tinham feito sacrifício para a criar. Explicou-lhe como o seu sonho era tirar um curso superior - Psicologia, era o que estudava - e como, um dia, por acaso, tinha dado com aquele bar e como aquela atmosfera a tinha apaixonado- a música, o jazz, o jazz, a noite da cidade... E explicou-lhe como não descansou enquanto não foi trabalhar para ali, com a finalidade de juntar o útil (ajudar a financiar os estudos) ao agradável.
Para ela, Sam tornou-se o confissor preferido. Era simpático e gostava de ouvir...
Parecia a companhia ideal para Sam. Sam apaixonou-se. Não era mais uma daquelas paixões que parecia que ia dar mais uma facada, das muitas facadas que ele tinha levado (não façam piadas políticas disto, por favor :P)
Sam estava no sétimo céu. A música que brotava dos seus dedos, ou melhor, de todo o seu ser, era idílica... De tal forma que os próprios anjos do paraíso, caídos do céu com a voz da cantora, sentir-se-iam em casa...
Um dia, depois de seis longos meses a Sam não aguentou mais... Depois de fazer o último anjo cair do seu pedestal, depois de fazer cento e trinta e quatro casais de namorados desfazerem-se em juras de amor múltiplas, eternas e alegadamente inquebráveis (até prova em contrário), Sam declarou-se à cantora... Dizia que a amava desde o primeiro dia que a tinha visto, que não poderia passar sem ela, e outras frases feitas que nós nos habituámos a ver nos filmes...
A cantora, sem perder a compostura, disse-lhe:
"Sam, eu gosto muito de ti como amigo, e não te quero magoar... mas - desculpa não te ter dito, mas não pensei que isso fosse importante - tenho namorado, estou apaixonada por ele e vamos casar dentro de dois meses..."


II
Sam não disse nada. A cantora foi chamada pelo patrão para actuar a seguir. Cada nota que ouvia era, isso sim, como uma farpa que se cravava fundo em Sam...
III
Sam ficou destroçado.
A partir daí, começou a desleixar o seu aspecto. Deixou crescer a barba, deixou de estar bem consigo próprio.
O Bacardi Lémon deu lugar a outras bebidas: Vodka, Whisky, Licores... O que fosse preciso para silenciar a dor e calar a alma...
A música idílica que tocava passou a comparar-se à mais pesada e soturna marcha de um qualquer autor obscuro (ou talvez não) do século dezoito. Deixou de encantar casais de namorados. Deixou de agradar ao público. Deixou de ser tocada com alma e começou a tornar-se mecânica, vulgar...
A partir de dado ponto, demitiu-se do bar. Já não conseguia encontrar dentro de si próprio o Sam que brilhava ao piano. Precisava de tempo para pensar.
Genérico
Desde então, Sam nunca mais tocou. Começou a vaguear pelas ruas, e por aí continua, sem rei nem roque, entregue à noite, ao rio, à tremulina da lua e às estrelas, que continuam sempre seus amigos na cidade que continua a amar profundamente... Por aí continua, sem rei nem roque, inveteradamente romântico, até que, pensa ele, uma qualquer princesa encantada, vinda sabe-se lá de onde, reapareça na sua vida e faça a história passar por um novo ciclo.
PS - Esta é uma das histórias do Sam. O Sam é o tal personagem de que o JC falava num comentário, e que eu partilhei em tempos com quem quis ouvir, naquela sala dos panos vermelhos - porque tal como ele, para suplício dos vizinhos, sou percussionista de pianos... Também tenho saudades dele. É, no fundo, mesmo no fundo, um bom tipo. Talvez em tempos tenha sido autobiográfico, ou talvez seja precisamente o meu oposto... Ou talvez não seja nem uma coisa nem outra! Esta, devo dizer, uma dúvida que tem assolado muitos dos meus próprios biógrafos, que têm morrido sem ter descoberto nada sobre o assunto... :P Enfim... C'est la vie... (Para não dizer sempre "é a vida"! :P)

2005/02/12

My (fuzzy) Valentine...

A humanidade tem costumes estranhos... Parece que têm dias certos durante o ano para fazer certas e determinadas coisas.
Senão vejamos:
No Natal, desata tudo a enviar SMS's, a oferecer ao próximo os melhores cacos que encontrar na loja dos trezentos mais próxima, e a participar em supostas campanhas de solidariedade organizadas para a altura, revertendo muitas delas a favor de empresários desfavorecidos...
No Ano Novo, toda a gente engole passas, champanhe aos tragos, desata a bater com tachos e a telefonar à família toda...
No Carnaval, a malta vai toda para desfiles, exercitando os passos de Samba (em Cuba é a Salsa... Um abraço para Cuba - a do Fidel e a do Alentejo...), e gozando, através de maravilhosos bonecos e carros em cortejo, com tudo quanto é facto, personagem ou acontecimento.
Isto, independentemente do facto de, no dia a seguir, cairmos na realidade de todos os dias, no chefe que não pára de nos chatear a mioleira, nos Prozacs e noutras drogas, cuja legalização não foi reivindicada pelo Bloco de Esquerda, porque já são legais...
Sim, acho que Carnaval devia ser todos os dias...
Outro desses dias, é o dia de São Valentim...

Ainda me lembro do primeiro dia de São Valentim que vivi.
No infantário tinha uma namorada. Chamava-se Joana. Vivíamos na mesma rua e brincávamos juntos, e toda a gente dizia que éramos namorados... Só isso...
Um dia, instigado pelas educadoras, ofereci-lhe um lenço. Foi uma das coisas mais românticas que fiz. No dia a seguir, era alvo de troça de meio infantário... (Os putos adoram gozar com os "namorados", até à adolescência, em que preferem ser troçados e aproveitar as hormonas, com tudo o que isso tem de bom e de mau...)
Tolhidos por esse sentimento também humano que é a vergonha, eu e a Joana deixámos de ser namorados nesse mesmo dia.
No entanto continuamos a ser amigos, apesar de não nos vermos há algum tempo... Seguimos as nossas próprias vidas, diferentes, mas creio que temos sempre presente que algum dia os nossos caminhos cruzaram-se... mesmo que num inocente amor de criança...
(Apeteceu-me partilhar isto...)



Falando ainda do dia de São Valentim...
Penso que qualquer pessoa que tenha o nome de Valentim deve ser considerado santo... (Imaginem só a tormenta, digna dos céus todos e mais algum, que será acordar todas as manhãs e ouvir o pai dizer "Valentim, vai buscar o jornal...")
No entanto, a Igreja Católica não pensa desta maneira.
Dos Valentins que existem por aí aos pontapés, só se resolveu a conceder a categoria de Santo a dois personagens da História.

Um deles era um padre que ajudava os cristãos a fugir das cadeias romanas... Um verdadeiro Rambo daqueles tempos... Uma das vezes, teve azar: foi apanhado, tendo sido torturado e decapitado...

O outro, para não variar, também era padre...
Rezam as crónicas que, na altura, o imperador Cláudio II, no século III, constatou que os melhores mancebos eram solteiros. Daí que tenha impedido os que ainda não tinham feito a respectiva despedida, com as strippers da altura, de passar à condição de casado...
Ora acontece que o bom do Valentim até gostava de fazer casamentos, (na frase "Crescei e multiplicai-vos, ele gostava mais da parte do multiplicar...) e à falta de agências matrimoniais na altura, deu-lhe na veneta para, aproveitando uma velha tradição pagã (o festival Lupercália, que era mais ou menos um Woodstock, mas virado para o engate...) resolveu crir uma.
Como era padre, dominava mais um dos passos na cadeia de produção, e começou a casar, em segredo, os jovens pares de namorados...
Foi descoberto e foi preso. Na prisão, ao que consta, mandou os votos de castidade às urtigas (ahhh, grande Don Juan!!!) e apaixonou-se pela filha do carcereiro, enviando-lhe cartas que eram assinadas com a frase "Do teu Valentim".
Não sei se ele conseguiu o objectivo mas o certo é que acabou torturado (não sei se pela filha do Carcereiro, qual Tiazinha romana...) e - adivinhem - decapitado... (E ainda dizem que o Sado-Masoquismo só apareceu depois... Safa!!!)
Resta dizer que, se fosse hoje, não teria tanto sucesso... com o que para aí vai de declínio nos casamentos... e com a concorrência que há no ramo, das agências matrimoniais e da Internet...

A Igreja da altura, à falta de filmes americanos para entreter a populaça, adorou as iniciativas, aproveitou o facto de ambos se chamarem Valentim, e reservou-lhes o dia 14 de Fevereiro na sua complicada agenda...
Hoje em dia, o dia é também chamado de dia dos Namorados, para gáudio dos fabricantes de lingerie, preservativos, postais e coisas afins...
As cartas, essas, foram substituidas por mails, sms, cartões virtuais e tudo o mais que a indústria inventou. Podem dizer verdades ou as "mentiras que fazem os outros felizes".
Quanto ao estranho costume que os seres humanos que supostamente se amam têm de dar objectos uns aos outros neste dia, de se desdobrarem em jantares especiais, em sessões de cinema especiais e, depois de inúmeras juras de amor especiais, passarem o resto da noite de uma forma "especial" (pode ser por exemplo no Hotel, em vez de ser no Fiat Uno estacionado num qualquer descampado...) , não tenho nada a dizer... Cada um faz o que lhe dá na telha...

Mas, por favor, deixem-me em paz... Não me obriguem a aturar os anúncios a relógios, a jantares, e até a penicos, os intermináveis programas sobre o São Valentim que metem o Toy, o Emanuel e a Àgata, e a ficar deprimido só porque neste momento não tenho namorada... ou não amo/sou amado, no sentido estrito da palavra...

Deixem-me amar (e quem diz amar, diz outras coisas para maiores de dezoito...) quando quero, quando tiver disponibilidade, e quando tiver reciprocidade, e não apenas porque existiu um bom de um padre, que se calhar até gostava de copos e mulheres nuas, que desatou para aí a fazer casamentos!

Obrigado! Do fundo do coração (não sei se o "fundo do coração" é a base ou o ápex do dito... mas não interessa...)

Do teu Valentim, digo, do teu IceTeaAddict




PS - (14/02) - Hoje, no metro, ao ler o jornal, tendo por ambiente mais uma música da bela da banda sonora dos best hits do Elton John, em flauta de pã, constatei que o dia de São Valentim é também, segundo a Sociedade Europeia de Andrologia o dia europeu da disfunção eréctil...
Por isso, companheiros, amigos, palhaços desta vida... Não se preocupem se, por qualquer motivo, o vosso motor perder os cavalos todos logo, durante a noite especial... Porque hoje, só hoje, ele ao menos tem um dia que é dele e só dele...
Não abusem é daquele combustível azul que se vende nas farmácias, porque senão correm o risco de o motor gripar de vez, e dar origem a mais uma daquelas histórias bizarras dos serviços de urgência...
Um bom dia para todos!

2005/02/07

"Queres um conselho? Dá de frosques..."

"14 anos a marrar, noites e mais noites em claro, férias a dar
consultas por telefone.
Queres um conselho? Dá de frosques."
Mão amiga fez-me chegar, hoje, um postal a anunciar a intenção de promover uma acção de recrutamento de pessoal, por parte de uma agência de publicidade. Mostrava a fotografia de um cirurgião com a frase que acima se cita.
Este postal fez com que um dos meus neurónios (sim, dessa díade imensa...) desse um clique... isto porque, tal como passo a informar para quem não foi suficientemente cusco para ir ver ao meu perfil, sou médico em início de carreira...
Acho que chegou a altura de falar mais um pouco sobre a minha profissão. Tenho estado algo relutante em fazê-lo directamente, porque não me encaro como um médico que tem um berlogue, mas sim como um ser humano que tem um berlogue, e que por mera coincidência desta telenovela mexicana que é a vida, é médico.
Ser médico, seja ou não em início de carreira, tem muito que se lhe diga.
Para algumas pessoas da sociedade em que vivemos, ser médico é sinónimo de estatuto social. Desenganem-se. Com o andar da História, e o advento da TVI, tudo passou a ser possível. Hoje, vemos netos com um "cabedal" de fazer inveja aos melhores tarzans do quinto esquerdo que habitam esse Portugal afora, pedirem, de forma intimidatória, e com ar de quem vai fazer o médico num fanico, explicações sobre o falecimento do avô, que padecia de diabetes, hipertensão arterial, insuficiência cardíaca em último grau, doença pulmonar crónica obstrutiva, com alguma sorte, tinha o fígado feito numa autêntica isca, e que entrou no serviço de urgência após 10 minutos em paragem cárdio-respiratória...
Com efeito, a classe médica tem visto a sua imagem denegrida. A pressão é enorme. Cada vez menos somos entendidos pela sociedade como seres humanos. Cada vez mais somos, para a sociedade, máquinas. Precisas, perfeitas, infalíveis.
Depois, somos culpados por tudo o que acontece, e também por tudo o que não acontece, mesmo que não tenhamos culpa nenhuma.
É por isso, entre outras razões, que a violência contra profissionais de saúde não pára de aumentar.
Para outras pessoas, ser médico é sinónimo de poder económico.
Nada de mais errado.
Claro que tudo depende da especialidade que se segue. Se bem que haja especialistas em determinadas especialidades que fazem pequenas fortunas em consultórios privados (até porque trabalham o tempo suficiente para isso) , há outras especialidade em que o exercício é eminentemente hospitalar (e como tal, maioritariamente público.)
Até digo mais: os médicos, mesmo os do sector privado, cada vez têm menor poder económico. Porquê? Porque as pequenas e médias empresas de prestação de cuidados de saúde, com as políticas sucessivas que têm sido tomadas neste sector, estão condenadas a ser, num prazo mais ou menos breve, uma espécie em vias de extinção. Quanto ao sector público, devo dizer que a remuneração é algo fraca para a responsabilidade e diferenciação profissional: temos óptimos profissionais médicos, diferenciadíssimos, no sector público (top of the top) a ganhar uma miséria, enquanto um serralheiro, não especialista em qualquer "nicho de mercado", consegue fazer num abrir e fechar de olhos três ou quatro vezes mais, fora os "biscates"... E assim vai a glória do mundo...
Mas falando em concreto sobre mim, que é para isso que estou a escrever... o início de carreira de um médico é algo atribulado.
Falando especificamente na minha pessoa, depois da licenciatura (6 anos) entrei para um estágio chamado internato geral, que me conferirá o direito de exercer medicina de forma autónoma, o que na prática significa que posso passar receitas e atestados...
Enquanto faço esse estágio, que, como em todos os estágios, remunerados ou não, por vezes implica engolir alguns sapos, e aturar determinado tipo de pessoas, assim que saio do serviço visto a minha máscara de rato da biblioteca, e leio um livro que nunca mais acaba, para um exame, que realizarei em Junho próximo, e que vai determinar os meus próximos 50 anos...
Equivale, mais ou menos, para uma pessoa que queira ir para uma especialidade diferente da medicina interna, a decorar a lista telefónica da capital do Sri Lanka, para lhe fazerem um teste de escolha múltipla,com perguntas do género:
"o número do Sr Li Hang Po é 8945545464?" (verdadeiro ou falso)
Depois, serei seriado segundo a nota do exame, e com base nessa série, escolherei a especialidade (que dura entre três a seis anos), bem como o sítio do país onde me vou treinar para ser especialista.
Por este motivo, toda a minha vida futura é um ponto de interrogação. Não sei o que vou fazer nem onde vou viver. Poderei ficar em qualquer santa terrinha, em qualquer hospital ou centro de saúde... (Graças a Deus que o País não é muito grande...) Desde a Dermatologia à Saúde Pública, tudo pode acontecer...
Perante toda esta panóplia de obstáculos, por vezes pergunto-me se vale a pena.
Por vezes, o desespero leva-me a pensar que a decisão mais lógica seria desistir e mudar de profissão, antes que os meus dois neurónios tenham um ataque de stress e entrem em colapso...
Todavia, não pequenas vezes, sinto que vale a pena.
Por exemplo, sinto que vale a pena quando olho nos olhos de uma pessoa e sinto que, só por ter uma bata branca, e, sobretudo, dois ouvidos para a ouvir, a estou a ajudar.
Sinto que vale a pena quando vejo o sorriso da D. Guilhermina, senhora de oitenta e quatro anos, quando me fala sobre a cidade que a viu nascer e quando vivo as histórias que me conta sobre as voltas que dava, quando conduzia o carro que o marido não queria dirigir.
Sinto que vale a pena quando vejo a satisfação do Sr Joaquim quando lhe digo, meio a brincar meio a sério: "É alentejano? Então é boa pessoa!"
Sinto que vale a pena quando vejo que o choro da D. Maria, a minha doente que tem um carcinoma do cólon em fase terminal, se transforma em riso quando lhe proponho uma corrida de cadeira de rodas...
Sinto que vale a pena quando, na Pediatria, vejo que consigo pôr o Guichas, um miúdo de um ano e meio, a brincar com o meu estetoscópio, quando no dia anterior ele fez uma birra de afugentar qualquer profissional de saúde que se preze...
Sinto que isto tudo, e muito mais, valem o neto que nos quer bater, a perda de poder económico, os 14 anos a marrar, as noites e mais noites em claro, as férias a dar consultas por telefone... independentemente da especialidade, independentemente de tudo...
É isto que a empresa de publicidade não menciona no postal. Mas também não lhes era conveniente fazê-lo, porque depois, não haveria assim tanta gente a "dar de frosques..."

2005/02/01

Onde é que eu já ouvi isto?!

Um dos factos que hoje me alegrou o dia foi descobrir que tenho algo em comum com o novo presidente do Millenium BCP.

Não, não decidi tirar o curso de direito, e doutorar-me em História do Direito pela Complutense de Madrid; igualmente, não creio que tenha passado pela minha cabeça tornar-me militante do Partido Social Democrata; tão pouco decidi tornar mais fundamentalista o meu discurso religioso e adoptar as posições preconizadas pelo detentor do mais rápido processo de canonização de toda a história da Igreja Católica...

Aquilo que descobri foi que, àparte as nossas divergências ideológicas, esse ilustre businessman da nossa praça compartilha comigo o facto de ser apreciador de dois compositores minimalistas com nome de detergente: Wim Mertens e Philip Glass. Só isso... (nem sequer o Porsche... :P)

E o que é que é preciso para fazer música minimalista?
Pega-se num tema qualquer (por exemplo, a parte inicial das "Pombinhas da Cat'rina") e repete-se o tema até que o espectador nos implore que já não o pode ouvir mais... Quando a plateia já estiverem com um gigantesco ataque colectivo de histeria, junta-se, em sequência, alguns acordes...

Faz-se isto várias vezes e zás... temos um tema minimalista!

A própria música pimba, por esta definição, é minimalista.
No entanto, a música pimba tem um pequeno pormenor que a distingue: em vez do tal acorde dissonante, tem uma letra. E, neste caso, o objectivo é ter o maior número de palavras possíveis a rimar com alho (ou a insinuar qualquer coisa que rime com isso), conseguindo a magnífica proeza de não dizer qualquer palavrão... (porque a censura anda aí - como dizia um cronista que eu li outro dia, - sob a forma de autocensura.)


Pimbalhadas à parte, independentemente de o processo de realização, o que interessa é que os cavalheiros que mencionei sabem fazer muito bem aquilo a que se dedicam...
Sabem fazê-lo tão bem que encantam plateias... sem ataques colectivos de histeria... sem alhos nem bugalhos.

E, pimbalhadas à parte, será que a própria história do ser humano não é um tema minimalista?
Só para dar alguns exemplos, aqui ficam três frases...

"Os adolescentes amam o luxo, têm maus modos, desprezam a autoridade, passam o tempo vagando nas praças e tiranizam seus mestres"
Sócrates
(PS - não sei se ele defendia a co-incineração ou não...)

"As razões que os governos dão para as guerras são sempre telas, atrás das quais, ficam escondidos motivos e razões completamente diferentes."
Conde Leon Nikolaievitch Tolstoi

"Nas revoluções há dois gêneros de pessoas: as que fazem e as que as aproveitam."
Napoleão Bonaparte

Será que a História, a Filosofia, a Psicolgia, não nos ensinam muito, sobre nós próprios, sobre os outros, sobre a sociedade em que vivemos?!
Talvez ensine... porque talvez tudo o que vivemos no momento actual não passe de parte de uma peça minimalista... uma variação incansável do mesmo tema sobre outros contextos harmónicos... Como diria um certo personagem do Contra-Informação... "É a vida..."