2005/02/07

"Queres um conselho? Dá de frosques..."

"14 anos a marrar, noites e mais noites em claro, férias a dar
consultas por telefone.
Queres um conselho? Dá de frosques."
Mão amiga fez-me chegar, hoje, um postal a anunciar a intenção de promover uma acção de recrutamento de pessoal, por parte de uma agência de publicidade. Mostrava a fotografia de um cirurgião com a frase que acima se cita.
Este postal fez com que um dos meus neurónios (sim, dessa díade imensa...) desse um clique... isto porque, tal como passo a informar para quem não foi suficientemente cusco para ir ver ao meu perfil, sou médico em início de carreira...
Acho que chegou a altura de falar mais um pouco sobre a minha profissão. Tenho estado algo relutante em fazê-lo directamente, porque não me encaro como um médico que tem um berlogue, mas sim como um ser humano que tem um berlogue, e que por mera coincidência desta telenovela mexicana que é a vida, é médico.
Ser médico, seja ou não em início de carreira, tem muito que se lhe diga.
Para algumas pessoas da sociedade em que vivemos, ser médico é sinónimo de estatuto social. Desenganem-se. Com o andar da História, e o advento da TVI, tudo passou a ser possível. Hoje, vemos netos com um "cabedal" de fazer inveja aos melhores tarzans do quinto esquerdo que habitam esse Portugal afora, pedirem, de forma intimidatória, e com ar de quem vai fazer o médico num fanico, explicações sobre o falecimento do avô, que padecia de diabetes, hipertensão arterial, insuficiência cardíaca em último grau, doença pulmonar crónica obstrutiva, com alguma sorte, tinha o fígado feito numa autêntica isca, e que entrou no serviço de urgência após 10 minutos em paragem cárdio-respiratória...
Com efeito, a classe médica tem visto a sua imagem denegrida. A pressão é enorme. Cada vez menos somos entendidos pela sociedade como seres humanos. Cada vez mais somos, para a sociedade, máquinas. Precisas, perfeitas, infalíveis.
Depois, somos culpados por tudo o que acontece, e também por tudo o que não acontece, mesmo que não tenhamos culpa nenhuma.
É por isso, entre outras razões, que a violência contra profissionais de saúde não pára de aumentar.
Para outras pessoas, ser médico é sinónimo de poder económico.
Nada de mais errado.
Claro que tudo depende da especialidade que se segue. Se bem que haja especialistas em determinadas especialidades que fazem pequenas fortunas em consultórios privados (até porque trabalham o tempo suficiente para isso) , há outras especialidade em que o exercício é eminentemente hospitalar (e como tal, maioritariamente público.)
Até digo mais: os médicos, mesmo os do sector privado, cada vez têm menor poder económico. Porquê? Porque as pequenas e médias empresas de prestação de cuidados de saúde, com as políticas sucessivas que têm sido tomadas neste sector, estão condenadas a ser, num prazo mais ou menos breve, uma espécie em vias de extinção. Quanto ao sector público, devo dizer que a remuneração é algo fraca para a responsabilidade e diferenciação profissional: temos óptimos profissionais médicos, diferenciadíssimos, no sector público (top of the top) a ganhar uma miséria, enquanto um serralheiro, não especialista em qualquer "nicho de mercado", consegue fazer num abrir e fechar de olhos três ou quatro vezes mais, fora os "biscates"... E assim vai a glória do mundo...
Mas falando em concreto sobre mim, que é para isso que estou a escrever... o início de carreira de um médico é algo atribulado.
Falando especificamente na minha pessoa, depois da licenciatura (6 anos) entrei para um estágio chamado internato geral, que me conferirá o direito de exercer medicina de forma autónoma, o que na prática significa que posso passar receitas e atestados...
Enquanto faço esse estágio, que, como em todos os estágios, remunerados ou não, por vezes implica engolir alguns sapos, e aturar determinado tipo de pessoas, assim que saio do serviço visto a minha máscara de rato da biblioteca, e leio um livro que nunca mais acaba, para um exame, que realizarei em Junho próximo, e que vai determinar os meus próximos 50 anos...
Equivale, mais ou menos, para uma pessoa que queira ir para uma especialidade diferente da medicina interna, a decorar a lista telefónica da capital do Sri Lanka, para lhe fazerem um teste de escolha múltipla,com perguntas do género:
"o número do Sr Li Hang Po é 8945545464?" (verdadeiro ou falso)
Depois, serei seriado segundo a nota do exame, e com base nessa série, escolherei a especialidade (que dura entre três a seis anos), bem como o sítio do país onde me vou treinar para ser especialista.
Por este motivo, toda a minha vida futura é um ponto de interrogação. Não sei o que vou fazer nem onde vou viver. Poderei ficar em qualquer santa terrinha, em qualquer hospital ou centro de saúde... (Graças a Deus que o País não é muito grande...) Desde a Dermatologia à Saúde Pública, tudo pode acontecer...
Perante toda esta panóplia de obstáculos, por vezes pergunto-me se vale a pena.
Por vezes, o desespero leva-me a pensar que a decisão mais lógica seria desistir e mudar de profissão, antes que os meus dois neurónios tenham um ataque de stress e entrem em colapso...
Todavia, não pequenas vezes, sinto que vale a pena.
Por exemplo, sinto que vale a pena quando olho nos olhos de uma pessoa e sinto que, só por ter uma bata branca, e, sobretudo, dois ouvidos para a ouvir, a estou a ajudar.
Sinto que vale a pena quando vejo o sorriso da D. Guilhermina, senhora de oitenta e quatro anos, quando me fala sobre a cidade que a viu nascer e quando vivo as histórias que me conta sobre as voltas que dava, quando conduzia o carro que o marido não queria dirigir.
Sinto que vale a pena quando vejo a satisfação do Sr Joaquim quando lhe digo, meio a brincar meio a sério: "É alentejano? Então é boa pessoa!"
Sinto que vale a pena quando vejo que o choro da D. Maria, a minha doente que tem um carcinoma do cólon em fase terminal, se transforma em riso quando lhe proponho uma corrida de cadeira de rodas...
Sinto que vale a pena quando, na Pediatria, vejo que consigo pôr o Guichas, um miúdo de um ano e meio, a brincar com o meu estetoscópio, quando no dia anterior ele fez uma birra de afugentar qualquer profissional de saúde que se preze...
Sinto que isto tudo, e muito mais, valem o neto que nos quer bater, a perda de poder económico, os 14 anos a marrar, as noites e mais noites em claro, as férias a dar consultas por telefone... independentemente da especialidade, independentemente de tudo...
É isto que a empresa de publicidade não menciona no postal. Mas também não lhes era conveniente fazê-lo, porque depois, não haveria assim tanta gente a "dar de frosques..."

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