2005/05/24

Hipocondria

Há duas atitudes que um profissional de saúde pode ter em relação à doença dos seus famliares: ou somos extremamente desleixados ("isso é só uma constipação... toma um anti-histamínico que isso passa"... e o avô tem uma pneumonia...) ou então somos precisamente o inverso ("Corrimento nasal? Dor de garganta? Tosse? Bem, ouve... isso pode ser um tumor laríngeo... é melhor fazeres uma ressonância... Ahhh, e já agora, uma tomografia por emissão de positrões... só por causa das coisas... Olha, e quando é que fizeste a última colonoscopia? Foi SÓ há 3 meses? Então é melhor repetir!!!")
Quando se passa aos próprios profissionais de saúde passa-se exactamente o mesmo: ou estamos a morrer e dizemos que não temos nada... ou então estamos "a morrer" e temos só uma gripezita, daquelas que não matam mas moem.

Isto tudo para dizer que, na sexta-feira, comecei com sintomas: dor de garganta (odinofagia, em mediquês).
Munindo-me de uma lanterna daquelas que dão imenso jeito para tudo, inclusivé para observar gargantas próprias e alheias, olhei a minha orofaringe ao espelho e vislumbrei, numa das amigdalas aquilo que me parecia um ponto séptico... Diagnóstico "brilhante": estou com uma amigdalite pultácea...

Nota do tradutor: os pontos sépticos são aqueles pontinhos brancos que, regra geral, aparecem durante a evolução de uma amigdalite pultácea - ou seja, uma amigdalite bacteriana. Na ausência dos mesmos, podemos dizer que se trata ou de uma amigdalite bacteriana em fase muito inicial, ou de uma amigdalite viral, de tratamento muito mais simples... De referir que há doenças que podem dar placas brancas nas amígdalas - a mononucleose infecciosa é uma delas, e, assim, induzir-nos em erro...

Como ainda não posso prescrever autonomamente medicamentos, dirigi-me ao CATUS do centro de saúde aqui da área. Fui atendido por uma colega um tanto ou quanto mal encarada, que, depois de me ter perguntado o que é que lá tinha ido fazer, me observou, e me disse que, apesar de não ter meios (o CATUS não tem sequer, pasme-se, uma lanterna para observar a orofaringe aos doentes que a ele recorrem), se tratava de uma amigdalite viral. No entanto, lá anuiu a passar-me um antibiótico... que, ainda mal refeito da cara de poucos amigos da colega, comprei e comecei a tomar prontamente.

Ainda no decurso dessa noite, comecei com sintomas gripais... Só depois é que me lembrei que, das duas uma: ou se tratava mesmo de uma amigdalite pultácea em fase inicial, "enxertada" numa constipação ou... de uma constipação, com um ataque de hipocondria... essa doença que afecta uma parte dos profissionais de saúde...

2005/05/23

Como tornar-se num médico nonsense

O serviço público deste berlogue está de regresso com mais um "manual...
Acabou o curso de medicina, mas não sabe o que fazer? (Excluída que está a opção de se juntar à polícia, porque tem o nono ano completo...)
As pessoas que povoam a enfermaria além de si (doentes, enfermeiras, auxiliares de acção médica, técnicos de exames complementares de diagnóstico) não lhe ligam?
Então... siga as seguintes sugestões...
(Algumas delas já foram por mim tentadas, e já vi outros médicos a tentar outras!!! Adivinhem quais!!!)

  1. Grite "serviço de quartos" de cada vez que entrar numa sala de uma enfermaria.
  2. Atenda o telefone do serviço com "Ok Teleseguro, bom dia, fala a Marta" nem que o seu nome seja Adérito, tenha voz de sabonete e haja mais pelos no seu peito do que árvores na Amazónia... (Se do outro lado responder o chefe, disfarce... Não quer que ele desconfie, pois não?)
  3. Se trabalhar num centro de saúde, na urgência ou na consulta de um hospital, olhe para os doentes de mais de 35 anos com ar sério e, depois de ouvir atentamente a história, diga convicto, com ar de quem fez um diagnóstico brilhante: "É o caruncho...", seja a história compatível com um enfarte agudo do miocárdio ou com hemorróidas.
  4. A resposta referida no ponto anterior pode também ser dada a todo e qualquer familiar que o "assedie", numa festa, com perguntas do género "Olha lá... O que dizes à minha flebite?!". A este propósito, pode ser também dito "Eu, é mais bolos..." ou, no caso específico em apreço, "Olá flebite!!!"
  5. Suba para cima de um banco na sala de espera e comece a fazer palestras. De caminho, pode experimentar um pouco de "table dancing". Todos os meios são válidos no que toca à promoção da saúde.
    (Nota: se for do sexo feminino e as suas medidas forem 86-60-86, esta última prática pode ter, também, efeitos comprovados na terapêutica de certas patologias que se tratam com comprimidos azuis... É o que dizem certos estudos americanos... Eles lá sabem...)
  6. Fomente a prática de jogos de rugby entre os doentes, utilizando como bola uma garrafa de soro.
  7. Preencha as requisições de análises como quem preenche um boletim do Euromilhões. (Para pontos extra... Preencha as prescrições de medicamentos dessa forma...)
  8. Responda com "Eu tirei o curso para ser médico, não tirei o curso para ser chato", de cada vez que alguém (familiar seu ou familiar de doente) lhe peça para, na qualidade de médico, dar um sermão a outrem...
  9. Dirija-se pessoalmente ao laboratório (ou mande um médico mais novo que lhe seja subordinado) para saber o resultado de cada análise que peça. (Nota: se a dada altura, os colegas do laboratório já não o puderem ver nem pintado, se tiverem uma fotografia sua na porta a servir de alvo ou se fizerem festa de arromba de cada vez que se for embora, não se admire muito...)
  10. Se for professor numa faculdade, esqueça-se de que, um dia, foi estudante e faça as perguntas mais difíceis nos exames... Afinal de contas, a maior parte dos futuros colegas que vai tratar constipações, tem, impreterivelmente, de saber quais os critérios de diagnóstico da neurofibromatose do tipo II. Certo? Certo!
  11. Faça malabarismos na visita médica, com palavras ou com outros materiais. (O mais vulgar é com palavras, mas não tenha medo de inovar... Serve tudo: seringas, sistemas de soros, algálias - com ou sem doente associado, dinamaps, monitores de sinais vitais...)
  12. Nomeie um juri de doentes. De cada vez que uma enfermeira passe no corredor da enfermaria, faça-os levantar cartazes com notas.

2005/05/19

Aos Sportinguistas...

Hoje não vou fazer os trocadilhos do costume.
Não vou chamar nomes ao Liedson, não vou dizer que desta vez ele não resolveu e a taça ardeu...
Não vou telefonar aos meus amigos sportinguistas a entoar cânticos com o nome do clube vencedor.

Porque o futebol, afinal de contas, não passa de "vinte e dois homens em cuecas a correrem atrás de uma bola"...

Hoje, só hoje, partilho da vossa tristeza. Porque ontem, só ontem, fui sportinguista, daqueles que se levantam do lugar e comemoram pela casa toda, quando é golo, e quase se atiram para o chão quando o ponta-de-lança falha uma jogada importante...

E no fim de semana vou fazer figas para que o Boavista não se lembre de ganhar!

2005/05/12

Como tornar-se num personagem nonsense em 10 lições

Continuando o serviço público deste berlogue, iniciado há uns tempos (ver aqui, aqui e aqui), coloco aqui um curto manual que nos ensina como nos tornarmos num personagem nonsense. Se pensam que basta ver toneladas de filmes dos Monty Python, o Gato Fedorento e a Contra-Informação todos os dias, que basta ler de fio a pavio as teorias do Nilton e o programa de Governo de todos os partidos políticos, desenganem-se...

Aqui vai o verdadeiro manual...

  • Assim que as portas de um elevador onde você esteja se fechem, desate a cantar freneticamente "A todos um bom Nataaaaaaaaal", mesmo que estejamos em Agosto e faça um calor de torrar os passarinhos...

  • Em todas as reuniões em que participe, interrompa constantemente o orador, dizendo: "Tem toda a razão, mas a cor branca das paredes é muito forte... Acho que ficava melhor em azul..."

  • Vá passear para o Centro Comercial, ao Domingo, de fato de treino.

  • Arranje uma cópia do Orçamento de Estado para 2005 (ou outro qualquer). Vá para uma estação de metro em hora de ponta e sente-se a lê-lo. Ria à gargalhada.

  • Vá ao Teatro de São Carlos ver ópera e ressone o tempo quase todo. Pouco antes de o espectáculo acabar, quando o tenor soltar um dó de peito conseguido a muito custo e alguma garganta, exclame um "Ahhh Fadista!!!", bem sentido...

  • Vá à missa e, ao melhor jeito das pessoas que anunciam a lotaria, cante, em voz desafinada, "Cem mil euros!", depois de o padre entoar um salmo...

  • Use meias brancas em cerimónias solenes (para pontos extra: use-as por cima das calças)

  • Grite "Roda dos milhões!!!" sempre que atender o telefone.

  • Vista uns boxers (ou lingerie) do Futebol Clube do Porto, uns calções do Futebol Clube do Porto, uma t-shirt do Futebol Clube do Porto, um cachecol do Futebol Clube do Porto. Pegue na sua bandeira do Futebol Clube do Porto e vá gritar pelo Boavista num jogo Benfica-Sporting. (Para pontuação extra... vá para o pé dos No Name Boys ou da Juve Leo...)

  • Muna-se de um livro da especialidade, daqueles que os pais que ainda não decidiram o nome do bebé compram, e chame um nome diferente à sua mulher, namorada, marido ou namorado todos os dias...

Contrastes

Mãe e filha entraram no consultório de planeamento familiar do centro de Saúde onde agora estou a estagiar.
A miúda pareceu-me um pouco tímida. (O assunto é susceptível de causar algum embaraço... sobretudo quando está uma pessoa do sexo masculino na sala...) Tinha dezassete anos, mas parecia um pouco mais nova.
- Sôtora, queria que a minha filha começasse a tomar o medicamento para não ficar grávida, e que ficasse protegida de doenças sexualmente transmissíveis... porque quer iniciar a vida sexual e... eu sou muito nova para ser avó!!!- disse a mãe.
A mãe aparentava quase ser irmã mais velha. vestida de cores claras, com um piercing no nariz, aparentava um ar jovial e bem disposto... Devia ter quarenta e poucos anos...
A médica fez algumas perguntas, para avaliar eventuais medidas a tomar. Deu-me indicação para pedir umas análises e uma ecografia pélvica, enquanto foi buscar a pílula.
Fez uma breve explanação, em termos acessíveis, sobre o modo de tomar, sobre os possíveis efeitos acessórios (como o spotting) e explicou que o único meio eficaz para proteger o organismo contra doenças sexualmente transmíssiveis é o preservativo. Marcou nova consulta para avaliar como estava a adaptação à pílula.
E despediu-se da rapariga, que sorria, num sorriso tímido que contrastava com o à-vontade da mãe.


Esta mãe é "toda p'rá frentex" - pensei eu.
Por momentos, pensei que estivesse num país "da Europa"... Abstraí-me do facto de o centro de saúde estar inserido num contexto demográfico problemático: pobreza, crime, toxicodependência, prostituição, baixo nível de escolaridade, mães adolescentes... Pensei que o planeamento familiar até funciona...

Ao mesmo tempo, lembrei-me de um caso de uma rapariga de 16 anos, provavelmente de um nível social muito superior, diabética insulino-dependente, que entrou na urgência no estágio de Ginecologia/Obstetrícia, com um aborto em evolução (não provocado, talvez facilitado pela diabetes). Tinha ficado grávida porque tinha vergonha de ir ao centro de saúde pedir a pílula, e vergonha de pedir dinheiro ao namorado para a comprar. Lembrei-me da atitude dos pais dessa rapariga, que a proibiriam de se relacionar com o namorado se soubessem que ela tinha vida sexual activa. Lembrei-me da chamada que fez da urgência, do telemóvel do próprio chefe de equipa. Disse à mãe, com a ingenuidade própria dos 16 anos, que tinha levado "um pontapé na barriga", que tinha "atingido o útero" e ficado "a sangrar". Claro que a mãe não acreditou, e pediu para falar com o chefe de equipa, que lhe disse apenas, e de forma totalmente correcta, que a filha estava informada sobre a situação clínica.
No próprio dia (eu, por acaso, estava de serviço à enfermaria onde ela ficou internada) tinha os pais a discutir e a gritar com ela. O namoro estava terminado.
Não sei o que foi feito dessa rapariga. A única coisa que recordo é que pedi o apoio da pedopsiquiatria. Tratava-se de uma família com uma grande conflitualidade, que poderia beneficiar de apoio nesse âmbito.

Houve muita coisa que talvez tenha falhado neste último caso. Talvez a comunicação entre a médica que a seguia e o centro de saúde, talvez os próprios pais, talvez o próprio círculo social em que ela estivesse inserida...Mas não vou falar sobre isto.

Vou apenas congratular-me com a atitude daquela primeira mãe e com o facto de, para a sua filha, se ter evitado, talvez, com uma gravidez não desejada na adolescência - um problema que é, não apenas médico, não apenas devido à orgânica do Serviço Nacional de Saúde, mas sobretudo social e de mentalidades.

2005/05/09

O ovo de pata

Aprendi algo que me devia ter servido de lição, quando tinha seis ou sete anos...
Uma prima minha, a residir numa aldeia, daquelas enterradas nas profundezas do Alentejo, deu-me um ovo de pata.
Eu sempre adorei ovos, de qualquer maneira que fosse, mas tenho uma predilecção especial por ovos mexidos... E um ovo de pata, ainda por cima mexido, era algo que eu nunca tinha provado!
Assim que viemos do Alentejo, a minha mãe perguntou-me:
- Então, queres o ovo mexido?
- Não... Tem de ser numa ocasião especial...
O certo é que os dias foram passando, e eu tinha sempre um motivo para recusar: ora já estava cheio, ora não me apetecia...
Até que um dia, finalmente me resolvi... Era nesse dia!
A minha mãe partiu-o com todo o cuidado para dentro de um prato... e... estava estragado! Tinha apodrecido durante o tempo que tinha demorado a "resolver-me"...
Ontem, dei por mim a pensar em quantos "ovos de pata" se estragaram, depois disso, ao longo da minha vida (mas também da de todos nós), por indecisão, timidez, medo ou mero laxismo...

(Apeteceu-me partilhar isto convosco...)

2005/05/07

(Un)Closer

Um dia, decidi escrever um post porque deixei de acreditar no Mundo, nos seres humanos, na verdade e na sinceridade acima de tudo.

Esse post era dedicado à S., uma pessoa que foi muito importante na minha actual existência terrena (apeteceu-me usar um eufemismo do "new age" para vida...)
Foi o meu primeiro amor "a sério". Na altura, o meu assistente de Pediatria, o dr. Gonçalo (ainda hoje considero os médicos daquele serviço como meus amigos...) dizia: "Senhor L. (ele tratava os alunos todos assim...), a Primavera para si começou mais tarde!..." (estávamos em meados de Junho...)
No entanto, a Primavera acabou uns meses depois. Os nossos caminhos acabaram por divergir, a tal existência terrena acabou por seguir o seu curso inexorável. E eu deixei de acreditar...

Não obstante esse facto, o Dr. Gonçalo, sempre que me encontrava nos corredores da faculdade (ou depois, quando estagiei no mesmo serviço), perguntava-me:
"Então Sr. L, essa Primavera, como está?"

O certo é que a Primavera, dr. Gonçalo, saltou o Verão e o Outono, e tornou-se num Inverno árido mas sombrio, e, depois de visualizar aquele filme, talvez num paroxismo de ambivalência, desatei a escrever.

O facto é que o momento mais escuro da noite é aquele imediatamente antes do nascer do sol e, por ironia, consequência directa desse post, encontrei a G....
A G. é alguém que contraria exactamente tudo o que nesse post é retratado ; alguém que me faz querer retirar o "estupidamente" à expressão "estupidamente romântico"; alguém que me faz rir ou chorar como só ela sabe; alguém que me faz querer ressuscitar o Sam, tirá-lo do rio, fazer-lhe reanimação cardio-respiratória, dar-lhe um piano para tocar e tirar-lhe a neura; alguém que não é comparável a ninguém, porque é única...

Apesar de continuarmos amigos, neste momento não sei o que aconteceu à S. em termos afectivos... algo me diz que está feliz, seja com quem for... E eu... também estou!...

Mesmo tendo como dado adquirido que nunca esquecerei a S. como pessoa, tal como todas as pessoas que deixam marcas, mais ou menos profundas, na nossa existência, o que é certo é que a G. começa a fazer-me acreditar novamente. Talvez qualquer amor que se preze seja, como diz, "como o primeiro"...E talvez me comece a fazer-me identificar, de novo, com algo que o Dr. Gonçalo me escreveu, num qualquer dia depois da Primavera, numa fita amarela com o emblema da faculdade:

"De olhar esbugalhado
Enquanto a história pondera
Pensamento noutro lado
Onde é sempre Primavera!..."


(Eu sei que não gostas que se agradeça, mas... obrigado, G...)