2005/04/28

Desencantos...

Algumas pessoas têm-me perguntado porque é que, sendo eu médico, este berlogue não versou, até há um tempo, maioritariamente sobre factos ou vivências relacionadas com a medicina, tal como alguns blogs congéneres que poderão ver na secção de links.
O motivo pelo qual eu estive reticente em o fazer é uma longa história...
Hesitei muito em a colocar aqui. Temia que fosse interpretado como um "lavar de roupa suja". Optei por o fazer, porque talvez haja pessoas que estejam a passar pela mesma situação, quer na medicina, quer em qualquer outra profissão.

Após a licenciatura em medicina, entrávamos/entramos num período de exercício tutelado, chamado internato geral, em que éramos/somos colocados num determinado estabelecimento hospitalar, e se passa/passava, durante dezoito meses, por vários estágios, em várias especialidades nucleares, no que toca ao exercício da medicina. As especialidades eram, a saber: Medicina Interna (6 meses), Pediatria, Ginecologia/Obstetrícia, Cirurgia e Medicina Geral e Familiar (com 3 meses cada uma).
Este período foi recentemente substituído por outro chamado Ano Comum.
(Não me vou pronunciar aqui, de momento, sobre o quão intempestiva foi a reforma do regime após a licenciatura em medicina. Fica para quando decidir falar sobre política de saúde... Devo só referir que, neste momento, sou uma das pessoas que ainda estão a fazer o moribundo Internato Geral, coexistindo neste momento, de forma mais ou menos pacífica, com os primeiros internos do recém-criado Ano Comum.)
Escolhi o hospital onde depois fui colocado com base em dois pressupostos. O primeiro pressuposto assentava no facto de correr o boato que os alunos de topo do meu curso fossem ficar no sítio onde me formei, podendo eu por essa via ficar eventualmente prejudicado na ordem dos estágios (que é escolhida segundo a nota de curso). O segundo pressuposto tinha por base os relatos de outros internos, que tinham dado nota positiva ao hospital.
Ao seguir ambos os pressupostos, cometi um erro crasso...

Escolhi as rotações, condicionado pelo facto de ter havido alguns colegas, com nota superior à minha, que escolheram o mesmo sítio que eu.
Escolhi ficar primeiro em Medicina Interna, passando depois por Pediatria e Ginecologia/Obstetrícia, e deixando para último a Cirurgia e a Clínica Geral (na altura, pensei que o exame de acesso à especialidade seria em Outubro de 2005 e não no 2º trimestre, como depois, por força de um decreto ministerial se veio a estabelecer.)

Confusões à parte, comecei, em Janeiro do ano passado, o estágio de Medicina Interna. De início até começou bem. Estava relativamente motivado para trabalhar. Licenciado de fresco, com o mundo pela frente...

No entanto, deparei com um mundo diferente daquilo que esperava. A minha equipa era composta por dois assistentes hospitalares- a Drª Maria e o Dr. Francisco; por duas internas do internato complementar - duas Anas; e por dois internos do internato geral - eu e outra Ana.


O Dr. Francisco era o assistente mais novo. Era um solteirão de quarenta anos que habitava com a mãe um apartamento ao pé do Hospital. Parecia algo inseguro. A Drª Maria dominava-o completamente.

A Drª Maria tinha uma personalidade muito peculiar. Apesar de (vim eu a saber depois) ter menor experiência de medicina interna que a maior parte dos colegas do serviço, tal não era evidente, pela forma como se expressava, atacando agressivamente mesmo quem não se colocasse no seu caminho.

A Drª Maria foi-me atribuida como tutora. Tal significava que era, supostamente, responsável pela minha formação, pelo que eu faria na enfermaria.

O primeiro mês nem correu mal. Tentava dar conta do recado o melhor que podia. A relação com a equipa de enfermagem era excelente, à excepção de um ou outro elemento, com os quais depois as mesmas se vieram a harmonizar. Tentei adaptar-me o melhor que pude às exigências e responsabilidades do ingresso na vida activa. A minha experiência de trabalho era escassa (apesar do sexto ano), e a minha preparação teórica, conferida pelo curso, já se tinha, de certo modo, esvaído. O volume de doentes para ver era grande, em comparação com a minha experiência da altura.
Tinha, até, um livejournal. Sentia-me fascinado com o exercício da medicina, apesar de me custar a habituar ao facto de ser médico, por não ter a necessária autonomia, e não saber a que corresponderiam, de facto, as minhas funções, (até onde é que poderia, legalmente, ir?!), algo que ainda hoje não está muito bem definido...
Confiava em absoluto na Drª Maria e na sua experiência...

A partir do segundo mês, porém, as condições começaram a "azedar". Na altura não percebi bem porquê, mas a Drª Maria começou a implicar comigo. Deixava a entender que eu era culpado de situações que aconteciam com os doentes, situações que, por vezes, reconheço eu hoje, ultrapassavam a minha competência.

Claro que, na altura, como tinha absoluta confiança na Drª Maria, interpretava as suas opiniões como válidas, quase como dogmas. A minha auto-estima profissional, já no contexto de uma auto-estima pessoal algo diminuída, por razões familiares, foi-se, em face disso, degradando. Sentia-me um inútil, do ponto de vista profissional, e deixei de escrever no livejournal, restando dele apenas "ruínas arqueológicas"...

Com o passar do tempo, a relação com a minha tutora foi-se agravando. Fui-me, gradualmente, tornando o "bombo da festa" lá do sítio. Era criticado e humilhado em público. Quando tentava falar com ela, ela nem sequer se dignava a olhar-me nos olhos. Como resultado, a minha estada naquele serviço passou a ser, gradualmente, um martírio. A minha motivação para trabalhar reduziu-se a praticamente zero.

As reacções da restante equipa de trabalho eram previsíveis. As outras internas faziam o jogo delas. Veneravam a drª Maria em público, mas, por vezes,quando se encontravam a sós comigo, criticavam-na. Não tenho a menor dúvida (soube-o por outras fontes) que quando eu virava as costas, acontecia o mesmo comigo...

Quanto aos outros médicos do serviço, os que trabalhavam no piso da Drª Maria pareciam adorá-la... Pudera, a relação desta com eles era excelente!

Um dia, não aguentei e contei o que se estava a passar a uma colega, interna do último ano da especialidade, com quem fiz, um dia, urgência interna. A partir daí, ela tornou-se minha "aliada", nesta "guerra sem armas", que eu nunca quis e tentei evitar ao máximo, dando até "a outra face"...
A minha colega disse-me que já tinha passado pela mesma situação, e que era assim que aquele tipo de pessoas agia. Para se evidenciar, para dominar um determinado grupo, antagonizava um "elo mais fraco". Neste caso, o "elo mais fraco" era eu... por razões circunstanciais...

Depois de muitas peripécias, que não vou aqui contar por falta de tempo, o estágio chegou ao fim.

No fim do estágio sentia-me completamente inadaptado. Estava de rastos, em depressão profunda. Sentia-me socialmente inapto, e que nunca iria ser um bom médico. Apesar de ir dando o melhor que podia, ao longo do tempo, o feedback que tinha recebido era, quase todo ele, negativo.

Nos últimos dias de estágio, a Drª Maria recusou-se, inclusivé a dar-me avaliação, no respectivo certificado. Falei, na altura, com o director de serviço. Ainda hoje estou para saber se foi ele que colocou o "Apto", se foi a secretária dele ou a empregada da limpeza...

Uma pergunta lógica que quem lê isto fará é... porque é que eu deixei que isto me acontecesse?
A resposta pode ser vista com múltiplos factores: em primeiro lugar, estava a entrar num mundo novo e desconhecido - o mundo do trabalho. Tinha medo de responder à letra, mas com educação, quando me afrontavam... (Hoje, felizmente, isso já se verifica menos...)
Por outro lado, não me sentia, na altura, socialmente muito à vontade - a maior parte da minha teia relacional tinha sido estabelecida durante o curso de Medicina, e, depois de acabar a faculdade, separámo-nos. Tal contribuiu, na minha perspectiva, para um maior isolamento do ponto de vista social.
Multiplos nexos de causalidade podem ser estabelecidos... O que é certo é que a situação por que passei tem um nome: assédio moral, e entrei no mundo do trabalho com o "pé esquerdo. Em resultado, ouve várias consequências:
  • Passei a ter tendência a ficar algo "de pé atrás" em relação às pessoas com quem me deparo no meio profissional. Durante seis meses, lidei com o cinismo, com o ódio focalizado, com a manipulação... Deixei de confiar nas pessoas... Não sei se vou recuperar desta situação...
  • A depressão profunda em que estive na altura, creio que foi mais ou menos ultrapassada, graças ao auxílio precioso de um ou outro amigo que se manteve firme a meu lado. (Durante uma grande parte do tempo, tive tendência a isolar-me, e houve quem contrariasse essa tendência...)
  • A minha auto-estima profissional está a recuperar gradualmente, com um ou outro retrocesso...
  • Ganhei uma abominação à medicina interna (Nada de pessoal, amigo Scrubs...). Talvez toda esta história se reflicta no estudo que fiz para o exame de acesso à especialidade... (Sim, era em tudo isto que pensava quando olhava para os livros e me apetecia fugir...)
  • "Desencantei-me" com a medicina durante algum tempo... As pequenas alegrias do dia-a-dia eram ofuscadas por toda esta realidade... Só agora é que pareço recuperar... Muito devagar... Muito gradualmente...

2005/04/21

A benfiquista...

- És de que clube? - perguntei a Teresa, quando ela se deitou na marquesa da sala de pequena cirurgia

- Sou do Benfica!

- Ah, se fosses do Sporting ia doer... Assim, como és do Benfica vou-te pôr um medicamento na ferida. Só vais sentir uma picadinha e não te vai doer nada a partir daí...

Teresa riu-se.

- De certeza que não vai doer?

- Como te disse, só vou dar uma picadinha com anestesia... É como a picadela de um mosquito...

- Mas isso quer dizer que vou dormir?

- Não... - disse eu - Há dois tipos de anestesia:a geral, que é para pôr as pessoas a dormir, e a local, em que as pessoas levam uma picadinha no local da ferida e não sentem nada...

(Por acaso até há outros tipos, mas não me quis alongar muito em explicações técnicas...)


Foi assim que tentei convencer a Teresa a ser suturada. Teresa era uma criança de 7 anos que tinha tropeçado e caído, no intervalo das aulas, tendo batido com o sobrolho e, por essa via, feito uma pequena ferida que necessitava de sutura. Vinha acompanhada pela educadora do ATL, Magda.

- Então o que queres ser quando fores grande?

- Quero ser enfermeira?

- Enfermeira? Queres tratar dos doentes? Mas que profissão bonita! Enfermeira Adrianaaaaa! Está aqui uma futura colega sua!"

(Tinha, como de costume, perguntado o nome à enfermeira que estava de serviço à pequena cirurgia, quando entrei, de manhã para a sala...
Lembro-me que, quando entrei no mundo do trabalho, para uma enfermaria de medicina, fiz algo que me ensinaram durante o estágio de 6º ano e durante a, até agora curta, vida: fomentei a melhor relação de trabalho possível com os restantes profissionais de saúde... sobretudo com os enfermeiros.
Isto é motivado, igualmente, pelo facto de a minha convicção pessoal ser que estamos todos do mesmo lado - do lado do doente, e que não há profissões mais importantes do que as outras.
Por exemplo, se não fosse a inestimável colaboração da pessoa que limpa as enfermarias, que me colhe o sangue para análise, ou que me leva os pedidos de exames ao serviço de radiologia, o meu trabalho estaria gravemente comprometido...
Tal atitude talvez tenha grangeado um certo desprezo pela parte dos meus colegas daquele serviço. Prova disso é que a relação com os médicos se degradou muito e que, hoje em dia, me dou muito melhor com os enfermeiros e auxiliares de acção médica do que com os médicos... )


Passados alguns minutos tinha montado a mesa de pequena cirurgia e, após tingir de castanho a sua pele, já de si escura (Teresa era de origem africana), preparava-me para injectar a anestesia.

- Não, não, não quueeeeeeeeeeero! - dizia Teresa, chorando... - Magdaaaa!!!

- Mas tu, que queres ser enfermeira, tens medo de agulhas?! Então, mas que vem a ser isto?!

- Não, eu não quero é tesouras!!!

- Mas eu não estou a usar tesoura nenhuma - Disse eu, dissimulando de certa forma o facto de o porta agulhas, o instrumento que utilizamos para montar as agulhas e o fio de sutura, se parecer com uma tesoura - Olha, como tu queres ser enfermeira, no fim, mostro-te aquilo que estive a utilizar! Está bem?

- Está bem... Mas de certeza que não dói?!

- Dói apenas a picadinha inicial... Olha, vamos fazer uma coisa - lembrei-me que tinha um spray "milagroso" chamado cloreto de etilo - vais sentir um frio, e depois não vais sentir picadinha nenhuma...

Pedi à enfermeira que, gentilmente, vaporizou cloreto de etilo sobre os bordos da ferida, e anestesiei...

- Mas eu não quero agulhas!!!!!! - continuava Teresa, chorando...

- Olha, agora não vai doer mais... Tens é de me deixar coser... Ok? - disse, depois de ter anestesiado.

- De certeza?

- Absoluta. Mas se doer diz-me, que é para eu dar mais anestesia!

- Eu não quero tesouras... Magdaaaaaa!!!

- Olha, eu prometi que não vai doer nada. - Toquei com a pinça. - Doi?

- Dóoooii...

- Então eu dou mais anestesia!

- Dói? - disse, depois de ter anestesiado, pinçando.

- Dói, mas não dês mais picas, que é só impressão!!! - disse, choramingando.

- Vou começar a suturar. Ficas muito quietinha, está bem?

- Magdaaaaaaaaa!!!
Eu, a educadora e a Enfermeira Adriana começámos a falar com ela... sobre a escola, sobre os outros meninos... A dada altura, Teresa já estava muito mais calma!

- Quantos anos tens? - perguntou para a Enfermeira Adriana, enquanto eu a suturava.

- Vinte e três.

- Xiiii, tantos!!!

- Tens irmãos?

- Tenho uma irmã!

- Quantos anos é que ela tem?

- Tem dezassete. E quer ser advogada! Achas que ela é boa da cabeça, para ser advogada?

- Naaaaaah!

Acabei a sutura. Tinha dado dois pontos.

- Portaste-te muito bem! Deixa-me só pôr um pouco de pele líquida - disse, antes de vaporizar o penso líquido.

Pronto, podes sair da marquesa!

Como prometido, mostrei a Teresa os ferros que tinha utilizado, explicando detalhadamente o que tinha feito. A criança sorria, interessada, fascinada...

Quando acabei, e depois de preencher as burocracias, a educadora disse-me:

- A mãe da Teresa está lá fora, e quer falar consigo.

Mandei a mãe entrar. Vinha na defensiva:

- O que aconteceu? Deixam-me para aqui e não me dizem nada!!!

- A Teresa caiu, fez uma ferida e teve de ser suturada - expliquei.

- Pelos gritos que ouvi, deve ter sido sem anestesia.

- Minha senhora, eu estive a convencer a Teresa a deixar-se anestesiar para suturar. Como viu, consegui. - Esforcei-me por manter a calma, e não dar sinais de revolta...

- Então e não partiu nada?

- Não, não partiu!

- E não fez radiografia do crânio porquê?

- Não fez radiografia do crânio porque não tem sinais nem sintomas de fractura...

Expliquei as recomendações habituais: quando deveria retirar pontos, para ficar vigilante, apesar de não ter partido nada e não ter tido perda de consciência... Dei-lhe a folha que se costuma dar aos traumatizados do crânio, "just in case"...

- Não vais à escola de tarde! - disse a mãe a Teresa

- Mas eu estou bem, deixa-me ir! - disse Teresa

- Já te disse que não vais! Se não fosses tão traquinas, não partias a cabeça!

- Repare, minha senhora, isto são coisas que acontecem... - tentei pôr água na fervura. - Se ela não brincar hoje que tem sete anos, quando é que vai brincar? Aos trinta?

A mãe, pouco convencida, viu-se obrigada a assentir...

Acompanhei-as à porta da Pequena Cirurgia.

- Dás-me um beijo, Teresa? - disse a Enfermeira Adriana

Teresa deu um beijo, sorrindo...

- Então e eu, não levo beijo? - falei eu...

Teresa voltou atrás, com o mesmo sorriso aberto, e repetiu a dose.

Depois de fechar a porta, um colega mais velho, interno da especialidade, que assistiu à entrada da mãe, comentou:

- Vi a forma como tu trataste a criança e o cuidado que tiveste. Não pediste radiografia de crânio porque achaste - e bem - que não havia critérios para tal. Mas se, por acaso, acontecer qualquer coisa, é este tipo de pessoas que, depois, faz queixas sem fundamento... Por isso, tem cuidado... Porque nós, por mais que queiramos, não podemos mudar o Mundo...

Foi com alguma tristeza que tive de concordar com ele... e foi também com alguma tristeza que me despedi, passadas umas horas, da simpática equipa de banco. O estágio de cirurgia está a acabar, e este foi o meu último serviço de urgência nesta especialidade... Pelo menos que eu saiba!!!

2005/04/15

Ao desafio...

Sim, este é mais um post dos muitos que se podem ver por essa "berloggaria" fora...
Desta vez, respondo a um repto* lançado pelo meu caro colega e amigo JC, cujo berlogue é um exemplo cabal do lado humano da prática médica, muito longe do ambiente "branco-asséptico" das batas e enfermarias. Tudo isto, escrito de uma forma muito clara, mas ao mesmo tempo, muito profunda...

Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro querias ser?

Hmmm... Ser um livro? Transformar-me num monte de folhas de papel susceptível de ser virado, revirado, folheado, desfolhado, amassado, rasgado, queimado...? Agrada-me a ideia, porque enquanto vivesse, faria rir, chorar, cantar, encantar, amar e reviver uma panóplia de personagens...

Que livro seria? Talvez um livro que fizesse rir! Ou que fizesse pensar... Hesito entre "Lisboa em Camisa" e "O Código Da Vinci"

Já alguma vez ficaste apanhadinho (a) por uma personagem de ficção?

Errr...
Por acaso fiquei... Tinha cerca de 5 anos de idade, e havia um personagem de uns livros para crianças que era o "Luís", e que usava um L grande na camisola. Já não me lembro do que é que ele fazia... Só sei é que andava à traulitada com os meus primos mais velhos... Sabem como são aquelas discussões de crianças: "Eu sou o Luís!" "Não és não, eu é que sou!" E , depois, toma lá que é democrático... (Não havia diplomacia nessas alturas...)

Depois, passei pela fase "Defenders of the Earth". Eu e um grupo de amigos da altura, no sítio de férias, atribuímos nomes de personagens dessa série a nós próprios. Não me lembro dos nomes dos outros, mas sei que na altura, eu era o Mandrake, o mágico... (Um mágico no peito...)

Durante a adolescência, no meio daquela dismorfofobia (pavor pelo próprio corpo) que é típica de muitos adolescentes, achei que tinha algumas semelhanças com o Garfield... (Hairy, Fat, Big Deal...)

Já durante o curso,identificava-me muito com o Dr Carter da série televisiva "ER"... Neste momento, gostava que a minha prática tivesse muito de Patch Adams, personagem personificada pelo Robin Williams, o palhaço da vida real...

Qual o último livro que compraste?

Para mim, foram dois: Jaime Bunda, Agente Secreto, de Pepetela, e Cidade de Deus, de Paulo Lins.

Quanto ao primeiro, quis conhecer o escritor, e no que toca ao segundo, adorei o filme, que me despertou curiosidade suficiente para ler o livro.

Qual o último livro que leste?

Ultimamente não tenho lido muito, devido ao "Marrating"...

O último livro completo que li foi uma das obras do Patch Adams (o palhaço na vida real), escritas em Português do Brasil, mas com uma visão da prática clínica impressionante, no mínimo (obrigado Martinha!)

Antes disso, li o "Código Da Vinci", em dois dias!!! :P Não conseguia parar para fazer qualquer outra coisa... Tomava as refeições com a família porque a família insistia muito... Só me aconteceu isso com o "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago... E até nem me revejo muito na sua forma de escrever... O que não lhe tira mérito nenhum!

"Que livro estás a ler?

Errr... Harrison's, Harrison's, Harrison's...

Estou a tentar ler o Jaime Bunda - Agente Secreto, e, só para contrariar os meus chefes, que não simpatizam nada com ele, o "Sem Receita", de Eduardo Barroso.

O Jaime Bunda é fabuloso! É uma sátira social e política muito bem escrita!
Quanto ao livro de Eduardo Barroso, a crónica é o meu estilo jornalístico favorito. Nele, o autor expõe muitas opiniões que versam o serviço nacional de saúde e a medicina em geral.

Que livros (cinco) levarias para uma ilha deserta?

Pergunta difícil... Sobretudo para quem não tem lido muito fora do estritamente técnico...

Os meus Domingos, de André Brun

(Um livro que encontrei no meio do pó de minha casa. São as crónicas de um dos melhores humoristas portugueses de todos os tempos escritas para o Diário de Notícias. É para rir do início ao fim!)

Lisboa em camisa, de Gervásio Lobato

(Autor do fim do século XIX, que escreve, igualmente de forma hilariante, com uma actualidade surpreendente.)

Parque Jurássico, de Michael Crichton

Cem anos de solidão - Gabriel Garcia Marquez

Onze minutos - Paulo Coelho

A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?

Tenho pena de só poder passar a três pessoas...

À minha priminha , para ver se ela actualiza o blog :P

À Margarida, que foi quem me alertou para o desafio.

À morena e à loira do Grelo Manhoso, porque estou curioso pela resposta :P

PS - O convite estende-se a todas as pessoas que compõem a minha lista de links, claro... (As regras existem para sabermos quando as devemos infringir :P)
PS 2 (*) - O repto foi-me também lançado, ao mesmo tempo, e sem que eu me apercebesse, pela Enfermeira Geraldinha. Um convite que me deixou "Com pinga de sangue..."

2005/04/12

"A culpa é sempre do preto, digo, do médico!!!"

Hoje, ao jantar em família, a televisão estava ligada...
É curioso que, hoje em dia, na sociedade moderna, não se pode passar sem a televisão, às refeições. Se, por acaso, tento, num daqueles raros acessos de repulsa aos media, desligar o aparelho descodificador de ondas hertzianas que povoa a minha cozinha, recebo a resposta peremptória da família:

- Então?! Hoje não se vê as notícias?!

E é então que, meio contrafeito, ligo a maldita da caixa, através de um prático instrumento, a melhor invenção a seguir à roda e aos kleenex's, para quem não quer fazer a aeróbica do sénhorr a levantar-se e sentar-se no sofá - o comando à distância.

Hoje, por acaso, estava a dar futebol. Como a restante família, com quem vivo, não gosta de futebol, a não ser que o Benfica perca (aí, passo eu a não gostar, durante o resto do dia) e para evitar, no mínimo, que fosse deserdado, decidi mudar de canal.

O problema é que, na minha cozinha, que serve como "Kitchenette", quando não estamos com pachorra para levar a tralha para outro sítio, não se consegue captar a SIC em condições, porque não há lá tomadas de antena, e a 2,l a essa hora, está a dar desenhos animados... Resultado: à falta de melhor divertimo-nos a observar a negação pura do jornalismo, no canal que sobra.

Hoje, a TVI, para não variar, estava a apontar os mísseis Scud a um dos seus alvos favoritos - a classe médica.

Lembro-me, há tempos, de um estudo feito pelo Prof Fragata, de Santa Marta, que extrapolava grosseiramente um estudo americano para o nosso país, e concluia que 3000 pessoas, todos os anos, morrem por erro médico. Neste contexto, o erro médico pode ter um manancial de causas, abrangendo uma multiplicidade de profissionais de saúde, e não configurando necessariamente negligência.

Para noticiar esse estudo, a SIC e a RTP puseram no título "3000 pessoas morrem em Portugal por negligência médica", enquanto a TVI colocava orgulhosamente, na sua tentativa heróica de levar as notícias as classes menos letradas: "3000 pessoas morrem em Portugal por culpa dos médicos"...


Dá vontade de dizer... "A culpa é sempre do preto, que neste caso é o médico", mas não quero ser politicamente incorrecto hoje... O facto é que, no entanto, esta abordagem dá que pensar.

É devido a esta abordagem que temos, todos os dias, pessoas que, se o avô de 91 anos que tem uma insuficiência cardíaca* do tamanho de umas casas, uma insuficiência renal** com um grau enorme, além de uma diabetes e de uma hipertensão, se lembrou de apanhar uma pneumonia dupla e morre, vão para a TVI, ainda antes de porem o processo no Ministério Público (Título: família pensa em pôr processo a médico do Hospital X), porque, afinal, a culpa é do sacana do médico, que não soube diagnosticar a tempo!

É certo que, durante o curso de medicina, nos é impingida uma cultura de perfeccionismo. Somos educados para não falhar, mas o certo é que, como seres humanos que somos, não podemos evitar certo e determinado tipo de erro, ainda que sob condições de funcionamento "ideais" - ou seja, haver bom ambiente de trabalho e os médicos estarem em condições perfeitas de saúde física e mental .
Claro que, como em tudo na vida, hoje em dia ninguém, é 100% santo (nem os Santos Padres... quanto mais uma classe inteira...) e os erros com negligência, e, até mesmo, com dolo, acontecem.

Por isso, tal como não me parece admissível uma filosofia de encobrimento das situações em que há dolo pela Ordem, também não me parece legítimo,que a sociedadetente procurar culpados à força. Não se tenta perceber porque aconteceu o erro... Quais foram as circunstâncias que o desencadearam. Uma cabeça terá, no fim de tudo, que rolar...

Será que não seria exigível, por parte desta, uma atitude mais proactiva, mais vocacionada para a prevenção do erro?

É por causa deste tipo de atitudes que a medicina, em Portugal, está cada vez mais defensiva. Pedimos todo o tipo de exames, os que interessam e os que, numa primeira abordagem, interessam menos, encarecendo os cuidados e contribuindo para que aumente o tão falado "buraco da saúde".

É por causa deste tipo de atitude que a medicina, em Portugal, está cada vez mais maquinizada. Os doentes já não são o Sr António ou o Sr José, mas o doente da cama 5 ou o homem da hérnia inguinal gigante.

Será que não podíamos ser um pouco mais construtivos?!


PS 1 - Hoje estive o dia todo de "telha"... Um link para compensar, vindo de Olhão, sobre trocadilhos no centro de Saúde, que é um excelente anti-depressivo!

PS 2 - Um abraço a todos os que possam sentir melindrados pelo título... É força de expressão...


Glossário (em português da TVI)

*Insuficiência cardíaca - Coração todo escavacado, que já não consegue fazer o sangue chegar em condições ao terceiro andar...
**Insuficiência renal - Rim feito num oito, que já não produz o suficiente para encher um copo de imperial...
(Ok, nunca mais bebo cerveja...:P)

2005/04/10

Look beyond your fingers

Para muitos, o homem era apenas mais um bêbedo que tinha caído de paraquedas naquela noite de urgência.

Todo ele tresandava a vinho, da cabeça aos pés, passando pelo hálito...
Tinha sido agredido, na colectividade onde costumava passar os tempos livres. Alguém, nessas alturas em que o álcool fala mais alto do que a própria razão, lhe tinha dado com uma garrafa na cabeça. Dessa agressão resultaram dois cortes, incisos, não muito profundos, no couro cabeludo.

Meio estremunhado, devido ao adiantado da hora, fui atendê-lo na pequena cirurgia.

Perguntei-lhe o que se tinha passado, e ele respondeu prontamente. Destapei-lhe a cabeça, que tinha sido vestida com um penso e uma ligadura, pela pessoa que em primeiro lugar lhe prestou assistência.
Seguidamente, comecei a desinfectar a ferida, com solução iodada e comecei a suturar.

Uma das coisas que mais me dá prazer na pequena cirurgia não é suturar. Aliás. corte e costura é algo que eu sempre tive alguma reticência em fazer (no segundo ciclo, a disciplina de Trabalhos Manuais, a par com educação visual e educação física - os três da vida airada - era, sistematicamente, uma das minhas piores disciplinas.)
Aquilo que, de facto, me dá mais prazer na Pequena Cirurgia é falar com as pessoas.

Pergunto-lhes de tudo (Bom, tudo, tudo, não... Não sejam depravados!). Depois do interrogatório estritamente clínico, sai a pergunta sacramental: "então, o que é que faz?", ou "de onde é?". Tenho recebido as respostas mais díspares, e tenho aprendido imenso sobre inúmeros mundos, inúmeras vidas.

Voltando ao assunto do qual estava a falar, perguntei ao senhor o que fazia.
A resposta espantou-me: ele era projectista num cinema.
Sempre considerei a profissão de projectista como uma profissão "mágica". (Não, não vi o "Cinema Paraíso" mais do que uma ou duas vezes... E não, agora que estou em altura de "crise", não estou a considerar que todas as profissões são "mágicas" menos a minha!!!)
Foi então que começámos a falar de cinema. Ele tinha visto, por obrigação profissional, milhentos filmes, nos quase vinte anos que levava de profissão.

Questionei-o sobre qual era o seu filme preferido. Retrucou que era "A Lista de Schindler". Conversámos sobre o filme. Para mim é um filme marcante, pelo facto de abordar o tema do Holocausto, pela forma como está realizado, pela banda sonora (John Williams no seu melhor...). Inevitavelmente, trocámos impressões sobre a criança que, no preto e branco do filme, se destaca com o seu vestido encarnado.

Gradualmente, o enfermeiro que estava de serviço à pequena cirurgia e o polícia que estava de serviço à urgência juntaram-se à discussão.

Passado cerca de meia hora, depois de termos abordado todos os filmes de Spielberg, os do Roberto Benigni e aflorado algumas obras de Monty Python, acabei de suturar.

Ao despedir-me do homem por quem ninguém dava nada, e que me proporcionou uma excelente conversa sobre cinema, a única frase que ecoava na minha mente era uma frase que ouvi num dos filmes da minha vida:

"Look beyond your fingers"

2005/04/06

"Marrating..."

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No ambiente sente-se um misto de adrenalina, suor e sono, de directas a estudar, de sonhos diluídos na imensidão teórica da matéria...


A tensão acumula-se. Dia após dia, mês após mês. Vive-se por objectivos, tal como os goleadores dos melhores clubes. No entanto, neste caso, as balizas são exames: dias marcados em que (passe a expressão) se vomita aquilo que se devorou de afogadilho nas últimas semanas.

Para, que, quais bulímicas descompensadas, as pessoas se vejam obrigadas a ter novo ataque de voracidade sobre os calhamaços para o próximo exame... para depois o ciclo se repetir, uma e outra vez, ano após ano, até que estejam completas as múltiplas disciplinas que compõem o curso.

Na época de exames, é assim a vida de um estudante de medicina. Não há tempo nem espaço para mais nada: come-se matéria, vive-se matéria, respira-se matéria, dorme-se matéria. Porque, segundo os novos e velhos modelos educativos, se reconhece que o curso de medicina deve ser centrado na auto-aprendizagem, leia-se, marranço puro e duro...

É claro que também afloram à pele outros sentimentos: a saudade dos companheiros que lutaram comigo durante seis longos anos (sem conotações políticas, por favor...), a alegria de encontrar alguns funcionários que me acompanharam na "empreitada", a sensação de encontrar alguns mestres que não me esqueceram e ainda me conhecem, o arrepio na espinha de passar por locais de certa forma marcantes na minha vivência académica, a estranheza de ver o local em evolução, pleno de caras de gente nova, que não conheço, e que não me reconhecem...

É com este espírito que volto, hoje, mais uma vez, à biblioteca da Cidade onde nasci para a medicina... que, por sua vez, fica sucessivamente dentro de duas outras Cidades... e faço aqui a devida homenagem aos Estudantes.

2005/04/05

Sunrise

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O momento mais escuro da noite é antes do nascer do Sol!