Um homem... Não, não era bem um homem, nem uma mulher... (Não, não era o José Castelo Branco...)
Ok, vamos recomeçar... Rebobina.. Agora no Play... Play it again... Já está! Sim, podes tocar o genérico...
Genérico
Era uma vez um rapaz. Era um rapaz como todos os outros... Ou talvez não... Atinado, "incapaz de partir um copo", ou talvez não...
Gostava da noite... Não da noite dos martelos, das luzes psicadélicas estonteantes, dos copos, das bebedeiras, dos porteiros mal-encarados de discotecas, que fazem o ambiente de um sítio com as suas duas palavras mágicas "Consumo mínimo"...
Gostava da noite pura, de vaguear pela noite do céu escuro, das estrelas, da tremulina no rio da cidade que amava...
Gostava de música, das noites tranquilas de uma coisa parecida com Jazz mas que não era Jazz, intervaladas por um copo da sua bebida preferida, que por acaso até era Bacardi Lemon, mas poderia ser qualquer outra... (Até porque o Bacardi devia ser consentâneo com salsa e não com jazz, mas enfim, a história é minha, posso fazer dela o que quiser...)
Gostava muito de tocar música. Neste caso particular (para martírio dos vizinhos de baixo), decidiu tornar-se percussionista de pianos, que é como quem diz, pianista...
A sua área era o improviso, desde que decidiu começar a improvisar num bar, para ganhar a vida... O certo é que, percutisse o que percutisse, percutia com a alma... Como se a música fosse o espaço para as palavras que nunca dizia...
Sim, este rapaz era muito tímido. Podia parecer muito extrovertido, mas quem lhe quisesse arrancar uma só palavra que fosse sobre o seu estado de espírito, ou, mais dificil ainda, sobre os seus sentimentos em relação a algo ou alguém, poderia esperar sentado (a)... (De preferência numa poltrona, que para esperar algumas eternidades é preciso conforto...)
A sua música parecia ter um efeito mágico sobre certos casais... Vários houve que se beijaram pela primeira vez ao ouvi-lo. Isso não significa que tivesse encontrado em algum tempo uma princesa encantada. Antes pelo contrário. Como extremamente tímido que era, era extremamente platónico. E como extremamente platónico, ficava extremamente abatido quando levava uma "tampa"... Nem que fosse uma "pseudotampa", daquelas "pseudotampas" ligeiras do estilo "Gosto muito de ti mas quero-te só como amigo... enquanto faço trinta por uma linha com o satânico do meu colega que tem um corpo muito melhor que o teu mas não dá uma para a caixa...", que doem (e por vezes até fazem sofrer mais) do que as tampas verdadeiras...
O facto de não ter encontrado a princesa encantada, e ter o coração marcado por cicatrizes afectivas sem que alguém, a não ser ele próprio, lhe tivesse espetado facas, enquanto servia de "casamenteiro" com a sua música, tinha um efeito ambivalente nele, no sentido psicanalítico da questão... Daí que ele se tivesse passado a apelidar de Sam... Não por se chamar Samuel ou ter algum nome aparentado com esse, mas devido à expressão do filme Casablanca, em que o par amoroso recém formado pede "Play it again, Sam"...
I
Foi então que um dia ele a viu. Ela acabara de se empregar naquele bar.
Desta vez, ela era mesmo linda! Mais linda do que a mais linda das pessoas por quem anteriormente se tinha apaixonado... Mais bela do que o suprassumo da beleza, mais charmosa do que o charme - o próprio adjectivo...
Era cantora. Viera de outra cidade, e a sua voz fazia Sam sair do sério... De cada vez que cantava, fazia os anjos caírem do céu.
Tornaram-se amigos. Ela explicou-lhe como tinha vindo do campo, onde os pais tinham feito sacrifício para a criar. Explicou-lhe como o seu sonho era tirar um curso superior - Psicologia, era o que estudava - e como, um dia, por acaso, tinha dado com aquele bar e como aquela atmosfera a tinha apaixonado- a música, o jazz, o jazz, a noite da cidade... E explicou-lhe como não descansou enquanto não foi trabalhar para ali, com a finalidade de juntar o útil (ajudar a financiar os estudos) ao agradável.
Para ela, Sam tornou-se o confissor preferido. Era simpático e gostava de ouvir...
Parecia a companhia ideal para Sam. Sam apaixonou-se. Não era mais uma daquelas paixões que parecia que ia dar mais uma facada, das muitas facadas que ele tinha levado (não façam piadas políticas disto, por favor :P)
Sam estava no sétimo céu. A música que brotava dos seus dedos, ou melhor, de todo o seu ser, era idílica... De tal forma que os próprios anjos do paraíso, caídos do céu com a voz da cantora, sentir-se-iam em casa...
Um dia, depois de seis longos meses a Sam não aguentou mais... Depois de fazer o último anjo cair do seu pedestal, depois de fazer cento e trinta e quatro casais de namorados desfazerem-se em juras de amor múltiplas, eternas e alegadamente inquebráveis (até prova em contrário), Sam declarou-se à cantora... Dizia que a amava desde o primeiro dia que a tinha visto, que não poderia passar sem ela, e outras frases feitas que nós nos habituámos a ver nos filmes...
A cantora, sem perder a compostura, disse-lhe:
"Sam, eu gosto muito de ti como amigo, e não te quero magoar... mas - desculpa não te ter dito, mas não pensei que isso fosse importante - tenho namorado, estou apaixonada por ele e vamos casar dentro de dois meses..."
II
Sam não disse nada. A cantora foi chamada pelo patrão para actuar a seguir. Cada nota que ouvia era, isso sim, como uma farpa que se cravava fundo em Sam...
III
Sam ficou destroçado.
A partir daí, começou a desleixar o seu aspecto. Deixou crescer a barba, deixou de estar bem consigo próprio.
O Bacardi Lémon deu lugar a outras bebidas: Vodka, Whisky, Licores... O que fosse preciso para silenciar a dor e calar a alma...
A música idílica que tocava passou a comparar-se à mais pesada e soturna marcha de um qualquer autor obscuro (ou talvez não) do século dezoito. Deixou de encantar casais de namorados. Deixou de agradar ao público. Deixou de ser tocada com alma e começou a tornar-se mecânica, vulgar...
A partir de dado ponto, demitiu-se do bar. Já não conseguia encontrar dentro de si próprio o Sam que brilhava ao piano. Precisava de tempo para pensar.
Genérico
Desde então, Sam nunca mais tocou. Começou a vaguear pelas ruas, e por aí continua, sem rei nem roque, entregue à noite, ao rio, à tremulina da lua e às estrelas, que continuam sempre seus amigos na cidade que continua a amar profundamente... Por aí continua, sem rei nem roque, inveteradamente romântico, até que, pensa ele, uma qualquer princesa encantada, vinda sabe-se lá de onde, reapareça na sua vida e faça a história passar por um novo ciclo.
PS - Esta é uma das histórias do Sam. O Sam é o tal personagem de que o JC falava num comentário, e que eu partilhei em tempos com quem quis ouvir, naquela sala dos panos vermelhos - porque tal como ele, para suplício dos vizinhos, sou percussionista de pianos... Também tenho saudades dele. É, no fundo, mesmo no fundo, um bom tipo. Talvez em tempos tenha sido autobiográfico, ou talvez seja precisamente o meu oposto... Ou talvez não seja nem uma coisa nem outra! Esta, devo dizer, uma dúvida que tem assolado muitos dos meus próprios biógrafos, que têm morrido sem ter descoberto nada sobre o assunto... :P Enfim... C'est la vie... (Para não dizer sempre "é a vida"! :P)
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