2005/03/03

Roletas Russas

Como escrevi há alguns posts atrás, vou, em Junho, ter um exame que vai decidir o que vou fazer nos próximos quarenta ou cinquenta anos... ou seja, vou, perante uma ordem determinada pelo tal exame, escolher uma especialidade, que pode ser qualquer uma... desde a Clínica Geral (sim, é uma especialidade, ao contrário do que muita gente pensa) até à Pediatria...

Ora acontece que, neste momento, não faço a mínima ideia daquilo que vou escolher, e, simultaneamente, não faço a mínima ideia sobre aquilo para que me sinto mais talhado. Ou seja, se por um acaso qualquer do destino, tirasse cem por cento no exame, não faria a mínima ideia sobre o que haveria de escolher... Como tirar cem por cento no exame é um pouco mais difícil do que acertar com os números do EuroMilhões, ganhar o primeiro prémio da Lotaria e acertar no Totobola sem jogar, as coisas complicam-se... Aliás, a semelhança entre o exame e o totobola é notória. A única diferença é que o Totobola não exige tanta preparação, e sou, dentro da minha ignorância, capaz de perceber um pouco mais de futebol do que da matéria que é perguntada...

Esta indecisão crónica faz-me lembrar o meu percurso escolar. Quando saí do nono ano, tinha bem claro na cabeça aquilo que queria fazer: Agrupamento Um - Cîências! Sempre tive uma curiosidade natural por tudo, sobretudo por o que envolvia mecanismos... No entanto, sempre tive uma preguiça enorme para fazer - leia-se, construir - tudo o que envolvesse "engenhocas". (Dizem os entendidos que é a lua em carneiro que me condiciona essa preguiça toda)
Por exemplo, sempre adorei trabalhar com gadgets - sempre que ia um aparelho electrónico qualquer novo lá para casa, não descansava enquanto não soubesse todas as funções daquilo e mais alguma... (Há uma amiga minha que utilizaria a palavra "nerd", e acho que aqui o sentido é perfeito...)

Como é que uma pessoa com este perfil envereda por medicina? A questão é algo fácil de responder... Lembram-se do "Era uma vez a vida"?
Sempre fui viciado nessa série... Sempre imaginei, por exemplo, os linfocitos B como naves tipo espacial que libertavam uns objectozinhos simpáticos com bigodes e nariz comprido.
Sempre imaginei as bactérias com um cabelo à punk e um nariz que faria inveja ao Gonzo, não o que canta, mas o dos Marretas... (The Muppets, para os que tiraram o curso de pseudointelectual...) ou os macrófagos como maquinas aspiradoras, de fazer inveja aos melhores que são publicitados por aí na TV
Ou os impulsos eléctricos que percorrem os neurónios, como uns tipos todos azuis com um penteado esquisito, mais velozes que uma bala...
Sempre imaginei, em suma, o corpo humano como uma gigantesca máquina, funcional, biológica, viva.
Os medicamentos, para mim, eram o meio de o próprio ser humano operar nessa máquina.
Por isso, a partir de dada altura, tal como os "gadgets", os medicamentos eram para mim simples e fáceis, nomeadamente no que toca ao mecanismo de acção e aos efeitos adversos.

No décimo-primeiro ano chegou a decisão difícil. O que fazer? Tinha, quanto a mim, duas alternativas: ou ia para uma carreira relacionada com engenharias - indubitavelmente engenharia de informática, ou ia para uma carreira que envolvesse ciências da vida.

Ora acontece que no décimo-primeiro ano andei um pouco deprimido. Para não bastar, apanhei uma disciplina de informática - introdução às tecnologias da informação II - que tinha algoritmia. Algoritmos são fulcrais em ciências informáticas - qualquer programador que se preze tem de os saber construir, no papel, antes de passar para o computador. A minha programação até à altura era um bocadinho "anárquica". Fazia os programas directamente no computador, ao correr dos dedos, que é como quem diz, ao correr da pena.
Eu não achava piada nenhuma àquilo. Daí que, quando me era perguntado se era aquilo que eu queria fazer na vida, eu respondia categoricamente que não.

Como até achava uma certa piada à investigação científica e aos medicamentos, decidi ir para as ciências da vida - Biologia e Química.

Em pleno décimo-segundo ano, a três meses da candidatura à faculdade, não sabia o que fazer. Pensava em medicina ou em farmácia, mais na vertente de investigação científica.

Pelo sim, pelo não, aconselharam-me a fazer os pré-requisitos para medicina. Naquela altura (não sei se ainda são) os pré-requisitos para medicina constavam de um atestado em que se dizia que eu não tinha quaisquer doenças que fossem obstáculo à comunicação interpessoal. Um formalismo interessante...

Nesse contexto, pedi ao médico que segue a minha família, e que é nosso médico de família por "adopção" que me passasse o atestado, e tive uma conversa com ele. Nessa conversa, que, para desespero das recepcionistas do consultório, que queriam "fechar a loja", durou uma infinidade de tempo, falámos sobre a profissão médica, sobre o que é que um médico fazia no dia-a-dia, e sobre as matérias que eram leccionadas durante o curso. Foi essa conversa que mudou o rumo da minha vida. Essa conversa e aquilo que me transmitiu, não verbalmente, sobre a sua forma de estar na vida, sobre a sua descontracção com os doentes, e sobre a relação médico-doente. Passei a querer medicina, ainda bastante inclinado para a vertente investigacional.

Depois, vieram os exames nacionais. Entrei para a faculdade.
Comecei a ter contacto com o ser humano e, sobretudo, com o ser humano que sofre (será que não somos todos nós seres humanos que sofremos?!). Comecei a apaixonar-me pela vertente clínica, e a pôr de parte a investigação.

Ao longo do curso, a minha visão da biologia humana mudou significativamente. Já não a vejo de forma tão romântica. Já não imagino naves espaciais nem homenzinhos de azul.

Para mim, o corpo humano já não é apenas "uma máquina", que se sabe integralmente como funciona.
Pensa, sente, age por si, e, no estado da arte actual, desconhece-se muito do seu funcionamento.

Isto tem implicações do ponto de vista terapêutico. Por exemplo, se eu der um determinado antidepressivo a um doente... (Não me apetece dizer marcas, mas começa em P, tem seis letras e acaba em C), eu sei lá como é que o medicamento vai actuar! Há, de facto, estudos feitos em ratinhos, que dizem que o medicamento, quando neles administrado, aumenta os níveis de serotonina, através do bloqueio da recaptação deste neurotransmissor... Mas não haverá acções a outros níveis? Ou interacções medicamentosas? Ou com a situação do próprio doente? Será que quando dou um medicamento, seja ele qual for, eu não estou a jogar à "roleta russa"?

É por isso que, à medida que me embrenho mais na carreira, me sinto cada vez mais ignorante. E, às vezes, penso quão mais fácil seria se não tivéssemos todos as navezinhas espaciais a lutar contra as bactérias do cabelo à "punk", com os homenzinhos de azul a modularem a coisa, enquanto os aspiradores aspiravam mortos e feridos do campo de batalha... E a complexidade do ser humano acabasse por aí... sem os algoritmos (lá estão eles, sempre a perseguir) complicados de diagnóstico e terapêutica, e listas intermináveis de doenças, e de percentagens, e de mutações, e de marcadores, e de sei lá o quê, que me obrigam a decorar para o exame.

Não será aquilo que chamamos de Vida uma sucessão de roletas russas?! (E aí está a frase pseudo-intelectual do dia! E viva o pacote das batatas fritas! E, já agora, viva Timor Lorosae!)

PS 1 - Já agora, companheiros de Harrison's - que eu ainda não atirei pela janela, mas estou quase a atirar - por acaso ninguém por aí sabe os números do EuroMilhões?!

PS 2- Obrigado aos que, apesar da minha relutância, me fazem lembrar que, como dizia um colega mais velho em comentário a um post, há vida para além do Harrison's... E sim, isto inclui um obrigado muito especial a vós, os que continuam a ler e a comentar, pacientemente, estes meus devaneios...

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