2005/04/28

Desencantos...

Algumas pessoas têm-me perguntado porque é que, sendo eu médico, este berlogue não versou, até há um tempo, maioritariamente sobre factos ou vivências relacionadas com a medicina, tal como alguns blogs congéneres que poderão ver na secção de links.
O motivo pelo qual eu estive reticente em o fazer é uma longa história...
Hesitei muito em a colocar aqui. Temia que fosse interpretado como um "lavar de roupa suja". Optei por o fazer, porque talvez haja pessoas que estejam a passar pela mesma situação, quer na medicina, quer em qualquer outra profissão.

Após a licenciatura em medicina, entrávamos/entramos num período de exercício tutelado, chamado internato geral, em que éramos/somos colocados num determinado estabelecimento hospitalar, e se passa/passava, durante dezoito meses, por vários estágios, em várias especialidades nucleares, no que toca ao exercício da medicina. As especialidades eram, a saber: Medicina Interna (6 meses), Pediatria, Ginecologia/Obstetrícia, Cirurgia e Medicina Geral e Familiar (com 3 meses cada uma).
Este período foi recentemente substituído por outro chamado Ano Comum.
(Não me vou pronunciar aqui, de momento, sobre o quão intempestiva foi a reforma do regime após a licenciatura em medicina. Fica para quando decidir falar sobre política de saúde... Devo só referir que, neste momento, sou uma das pessoas que ainda estão a fazer o moribundo Internato Geral, coexistindo neste momento, de forma mais ou menos pacífica, com os primeiros internos do recém-criado Ano Comum.)
Escolhi o hospital onde depois fui colocado com base em dois pressupostos. O primeiro pressuposto assentava no facto de correr o boato que os alunos de topo do meu curso fossem ficar no sítio onde me formei, podendo eu por essa via ficar eventualmente prejudicado na ordem dos estágios (que é escolhida segundo a nota de curso). O segundo pressuposto tinha por base os relatos de outros internos, que tinham dado nota positiva ao hospital.
Ao seguir ambos os pressupostos, cometi um erro crasso...

Escolhi as rotações, condicionado pelo facto de ter havido alguns colegas, com nota superior à minha, que escolheram o mesmo sítio que eu.
Escolhi ficar primeiro em Medicina Interna, passando depois por Pediatria e Ginecologia/Obstetrícia, e deixando para último a Cirurgia e a Clínica Geral (na altura, pensei que o exame de acesso à especialidade seria em Outubro de 2005 e não no 2º trimestre, como depois, por força de um decreto ministerial se veio a estabelecer.)

Confusões à parte, comecei, em Janeiro do ano passado, o estágio de Medicina Interna. De início até começou bem. Estava relativamente motivado para trabalhar. Licenciado de fresco, com o mundo pela frente...

No entanto, deparei com um mundo diferente daquilo que esperava. A minha equipa era composta por dois assistentes hospitalares- a Drª Maria e o Dr. Francisco; por duas internas do internato complementar - duas Anas; e por dois internos do internato geral - eu e outra Ana.


O Dr. Francisco era o assistente mais novo. Era um solteirão de quarenta anos que habitava com a mãe um apartamento ao pé do Hospital. Parecia algo inseguro. A Drª Maria dominava-o completamente.

A Drª Maria tinha uma personalidade muito peculiar. Apesar de (vim eu a saber depois) ter menor experiência de medicina interna que a maior parte dos colegas do serviço, tal não era evidente, pela forma como se expressava, atacando agressivamente mesmo quem não se colocasse no seu caminho.

A Drª Maria foi-me atribuida como tutora. Tal significava que era, supostamente, responsável pela minha formação, pelo que eu faria na enfermaria.

O primeiro mês nem correu mal. Tentava dar conta do recado o melhor que podia. A relação com a equipa de enfermagem era excelente, à excepção de um ou outro elemento, com os quais depois as mesmas se vieram a harmonizar. Tentei adaptar-me o melhor que pude às exigências e responsabilidades do ingresso na vida activa. A minha experiência de trabalho era escassa (apesar do sexto ano), e a minha preparação teórica, conferida pelo curso, já se tinha, de certo modo, esvaído. O volume de doentes para ver era grande, em comparação com a minha experiência da altura.
Tinha, até, um livejournal. Sentia-me fascinado com o exercício da medicina, apesar de me custar a habituar ao facto de ser médico, por não ter a necessária autonomia, e não saber a que corresponderiam, de facto, as minhas funções, (até onde é que poderia, legalmente, ir?!), algo que ainda hoje não está muito bem definido...
Confiava em absoluto na Drª Maria e na sua experiência...

A partir do segundo mês, porém, as condições começaram a "azedar". Na altura não percebi bem porquê, mas a Drª Maria começou a implicar comigo. Deixava a entender que eu era culpado de situações que aconteciam com os doentes, situações que, por vezes, reconheço eu hoje, ultrapassavam a minha competência.

Claro que, na altura, como tinha absoluta confiança na Drª Maria, interpretava as suas opiniões como válidas, quase como dogmas. A minha auto-estima profissional, já no contexto de uma auto-estima pessoal algo diminuída, por razões familiares, foi-se, em face disso, degradando. Sentia-me um inútil, do ponto de vista profissional, e deixei de escrever no livejournal, restando dele apenas "ruínas arqueológicas"...

Com o passar do tempo, a relação com a minha tutora foi-se agravando. Fui-me, gradualmente, tornando o "bombo da festa" lá do sítio. Era criticado e humilhado em público. Quando tentava falar com ela, ela nem sequer se dignava a olhar-me nos olhos. Como resultado, a minha estada naquele serviço passou a ser, gradualmente, um martírio. A minha motivação para trabalhar reduziu-se a praticamente zero.

As reacções da restante equipa de trabalho eram previsíveis. As outras internas faziam o jogo delas. Veneravam a drª Maria em público, mas, por vezes,quando se encontravam a sós comigo, criticavam-na. Não tenho a menor dúvida (soube-o por outras fontes) que quando eu virava as costas, acontecia o mesmo comigo...

Quanto aos outros médicos do serviço, os que trabalhavam no piso da Drª Maria pareciam adorá-la... Pudera, a relação desta com eles era excelente!

Um dia, não aguentei e contei o que se estava a passar a uma colega, interna do último ano da especialidade, com quem fiz, um dia, urgência interna. A partir daí, ela tornou-se minha "aliada", nesta "guerra sem armas", que eu nunca quis e tentei evitar ao máximo, dando até "a outra face"...
A minha colega disse-me que já tinha passado pela mesma situação, e que era assim que aquele tipo de pessoas agia. Para se evidenciar, para dominar um determinado grupo, antagonizava um "elo mais fraco". Neste caso, o "elo mais fraco" era eu... por razões circunstanciais...

Depois de muitas peripécias, que não vou aqui contar por falta de tempo, o estágio chegou ao fim.

No fim do estágio sentia-me completamente inadaptado. Estava de rastos, em depressão profunda. Sentia-me socialmente inapto, e que nunca iria ser um bom médico. Apesar de ir dando o melhor que podia, ao longo do tempo, o feedback que tinha recebido era, quase todo ele, negativo.

Nos últimos dias de estágio, a Drª Maria recusou-se, inclusivé a dar-me avaliação, no respectivo certificado. Falei, na altura, com o director de serviço. Ainda hoje estou para saber se foi ele que colocou o "Apto", se foi a secretária dele ou a empregada da limpeza...

Uma pergunta lógica que quem lê isto fará é... porque é que eu deixei que isto me acontecesse?
A resposta pode ser vista com múltiplos factores: em primeiro lugar, estava a entrar num mundo novo e desconhecido - o mundo do trabalho. Tinha medo de responder à letra, mas com educação, quando me afrontavam... (Hoje, felizmente, isso já se verifica menos...)
Por outro lado, não me sentia, na altura, socialmente muito à vontade - a maior parte da minha teia relacional tinha sido estabelecida durante o curso de Medicina, e, depois de acabar a faculdade, separámo-nos. Tal contribuiu, na minha perspectiva, para um maior isolamento do ponto de vista social.
Multiplos nexos de causalidade podem ser estabelecidos... O que é certo é que a situação por que passei tem um nome: assédio moral, e entrei no mundo do trabalho com o "pé esquerdo. Em resultado, ouve várias consequências:
  • Passei a ter tendência a ficar algo "de pé atrás" em relação às pessoas com quem me deparo no meio profissional. Durante seis meses, lidei com o cinismo, com o ódio focalizado, com a manipulação... Deixei de confiar nas pessoas... Não sei se vou recuperar desta situação...
  • A depressão profunda em que estive na altura, creio que foi mais ou menos ultrapassada, graças ao auxílio precioso de um ou outro amigo que se manteve firme a meu lado. (Durante uma grande parte do tempo, tive tendência a isolar-me, e houve quem contrariasse essa tendência...)
  • A minha auto-estima profissional está a recuperar gradualmente, com um ou outro retrocesso...
  • Ganhei uma abominação à medicina interna (Nada de pessoal, amigo Scrubs...). Talvez toda esta história se reflicta no estudo que fiz para o exame de acesso à especialidade... (Sim, era em tudo isto que pensava quando olhava para os livros e me apetecia fugir...)
  • "Desencantei-me" com a medicina durante algum tempo... As pequenas alegrias do dia-a-dia eram ofuscadas por toda esta realidade... Só agora é que pareço recuperar... Muito devagar... Muito gradualmente...

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