2005/04/21

A benfiquista...

- És de que clube? - perguntei a Teresa, quando ela se deitou na marquesa da sala de pequena cirurgia

- Sou do Benfica!

- Ah, se fosses do Sporting ia doer... Assim, como és do Benfica vou-te pôr um medicamento na ferida. Só vais sentir uma picadinha e não te vai doer nada a partir daí...

Teresa riu-se.

- De certeza que não vai doer?

- Como te disse, só vou dar uma picadinha com anestesia... É como a picadela de um mosquito...

- Mas isso quer dizer que vou dormir?

- Não... - disse eu - Há dois tipos de anestesia:a geral, que é para pôr as pessoas a dormir, e a local, em que as pessoas levam uma picadinha no local da ferida e não sentem nada...

(Por acaso até há outros tipos, mas não me quis alongar muito em explicações técnicas...)


Foi assim que tentei convencer a Teresa a ser suturada. Teresa era uma criança de 7 anos que tinha tropeçado e caído, no intervalo das aulas, tendo batido com o sobrolho e, por essa via, feito uma pequena ferida que necessitava de sutura. Vinha acompanhada pela educadora do ATL, Magda.

- Então o que queres ser quando fores grande?

- Quero ser enfermeira?

- Enfermeira? Queres tratar dos doentes? Mas que profissão bonita! Enfermeira Adrianaaaaa! Está aqui uma futura colega sua!"

(Tinha, como de costume, perguntado o nome à enfermeira que estava de serviço à pequena cirurgia, quando entrei, de manhã para a sala...
Lembro-me que, quando entrei no mundo do trabalho, para uma enfermaria de medicina, fiz algo que me ensinaram durante o estágio de 6º ano e durante a, até agora curta, vida: fomentei a melhor relação de trabalho possível com os restantes profissionais de saúde... sobretudo com os enfermeiros.
Isto é motivado, igualmente, pelo facto de a minha convicção pessoal ser que estamos todos do mesmo lado - do lado do doente, e que não há profissões mais importantes do que as outras.
Por exemplo, se não fosse a inestimável colaboração da pessoa que limpa as enfermarias, que me colhe o sangue para análise, ou que me leva os pedidos de exames ao serviço de radiologia, o meu trabalho estaria gravemente comprometido...
Tal atitude talvez tenha grangeado um certo desprezo pela parte dos meus colegas daquele serviço. Prova disso é que a relação com os médicos se degradou muito e que, hoje em dia, me dou muito melhor com os enfermeiros e auxiliares de acção médica do que com os médicos... )


Passados alguns minutos tinha montado a mesa de pequena cirurgia e, após tingir de castanho a sua pele, já de si escura (Teresa era de origem africana), preparava-me para injectar a anestesia.

- Não, não, não quueeeeeeeeeeero! - dizia Teresa, chorando... - Magdaaaa!!!

- Mas tu, que queres ser enfermeira, tens medo de agulhas?! Então, mas que vem a ser isto?!

- Não, eu não quero é tesouras!!!

- Mas eu não estou a usar tesoura nenhuma - Disse eu, dissimulando de certa forma o facto de o porta agulhas, o instrumento que utilizamos para montar as agulhas e o fio de sutura, se parecer com uma tesoura - Olha, como tu queres ser enfermeira, no fim, mostro-te aquilo que estive a utilizar! Está bem?

- Está bem... Mas de certeza que não dói?!

- Dói apenas a picadinha inicial... Olha, vamos fazer uma coisa - lembrei-me que tinha um spray "milagroso" chamado cloreto de etilo - vais sentir um frio, e depois não vais sentir picadinha nenhuma...

Pedi à enfermeira que, gentilmente, vaporizou cloreto de etilo sobre os bordos da ferida, e anestesiei...

- Mas eu não quero agulhas!!!!!! - continuava Teresa, chorando...

- Olha, agora não vai doer mais... Tens é de me deixar coser... Ok? - disse, depois de ter anestesiado.

- De certeza?

- Absoluta. Mas se doer diz-me, que é para eu dar mais anestesia!

- Eu não quero tesouras... Magdaaaaaa!!!

- Olha, eu prometi que não vai doer nada. - Toquei com a pinça. - Doi?

- Dóoooii...

- Então eu dou mais anestesia!

- Dói? - disse, depois de ter anestesiado, pinçando.

- Dói, mas não dês mais picas, que é só impressão!!! - disse, choramingando.

- Vou começar a suturar. Ficas muito quietinha, está bem?

- Magdaaaaaaaaa!!!
Eu, a educadora e a Enfermeira Adriana começámos a falar com ela... sobre a escola, sobre os outros meninos... A dada altura, Teresa já estava muito mais calma!

- Quantos anos tens? - perguntou para a Enfermeira Adriana, enquanto eu a suturava.

- Vinte e três.

- Xiiii, tantos!!!

- Tens irmãos?

- Tenho uma irmã!

- Quantos anos é que ela tem?

- Tem dezassete. E quer ser advogada! Achas que ela é boa da cabeça, para ser advogada?

- Naaaaaah!

Acabei a sutura. Tinha dado dois pontos.

- Portaste-te muito bem! Deixa-me só pôr um pouco de pele líquida - disse, antes de vaporizar o penso líquido.

Pronto, podes sair da marquesa!

Como prometido, mostrei a Teresa os ferros que tinha utilizado, explicando detalhadamente o que tinha feito. A criança sorria, interessada, fascinada...

Quando acabei, e depois de preencher as burocracias, a educadora disse-me:

- A mãe da Teresa está lá fora, e quer falar consigo.

Mandei a mãe entrar. Vinha na defensiva:

- O que aconteceu? Deixam-me para aqui e não me dizem nada!!!

- A Teresa caiu, fez uma ferida e teve de ser suturada - expliquei.

- Pelos gritos que ouvi, deve ter sido sem anestesia.

- Minha senhora, eu estive a convencer a Teresa a deixar-se anestesiar para suturar. Como viu, consegui. - Esforcei-me por manter a calma, e não dar sinais de revolta...

- Então e não partiu nada?

- Não, não partiu!

- E não fez radiografia do crânio porquê?

- Não fez radiografia do crânio porque não tem sinais nem sintomas de fractura...

Expliquei as recomendações habituais: quando deveria retirar pontos, para ficar vigilante, apesar de não ter partido nada e não ter tido perda de consciência... Dei-lhe a folha que se costuma dar aos traumatizados do crânio, "just in case"...

- Não vais à escola de tarde! - disse a mãe a Teresa

- Mas eu estou bem, deixa-me ir! - disse Teresa

- Já te disse que não vais! Se não fosses tão traquinas, não partias a cabeça!

- Repare, minha senhora, isto são coisas que acontecem... - tentei pôr água na fervura. - Se ela não brincar hoje que tem sete anos, quando é que vai brincar? Aos trinta?

A mãe, pouco convencida, viu-se obrigada a assentir...

Acompanhei-as à porta da Pequena Cirurgia.

- Dás-me um beijo, Teresa? - disse a Enfermeira Adriana

Teresa deu um beijo, sorrindo...

- Então e eu, não levo beijo? - falei eu...

Teresa voltou atrás, com o mesmo sorriso aberto, e repetiu a dose.

Depois de fechar a porta, um colega mais velho, interno da especialidade, que assistiu à entrada da mãe, comentou:

- Vi a forma como tu trataste a criança e o cuidado que tiveste. Não pediste radiografia de crânio porque achaste - e bem - que não havia critérios para tal. Mas se, por acaso, acontecer qualquer coisa, é este tipo de pessoas que, depois, faz queixas sem fundamento... Por isso, tem cuidado... Porque nós, por mais que queiramos, não podemos mudar o Mundo...

Foi com alguma tristeza que tive de concordar com ele... e foi também com alguma tristeza que me despedi, passadas umas horas, da simpática equipa de banco. O estágio de cirurgia está a acabar, e este foi o meu último serviço de urgência nesta especialidade... Pelo menos que eu saiba!!!

1 comentário:

Vítor disse...

Embora não o conheça julgo que gostaria de trabalhar consigo, pelo menos a julgar pelo respeito que manifesta pelas outras equipas com que trabalha. É bom saber que há médicos assim...

Vítor Barbosa, Enf.