2005/04/12

"A culpa é sempre do preto, digo, do médico!!!"

Hoje, ao jantar em família, a televisão estava ligada...
É curioso que, hoje em dia, na sociedade moderna, não se pode passar sem a televisão, às refeições. Se, por acaso, tento, num daqueles raros acessos de repulsa aos media, desligar o aparelho descodificador de ondas hertzianas que povoa a minha cozinha, recebo a resposta peremptória da família:

- Então?! Hoje não se vê as notícias?!

E é então que, meio contrafeito, ligo a maldita da caixa, através de um prático instrumento, a melhor invenção a seguir à roda e aos kleenex's, para quem não quer fazer a aeróbica do sénhorr a levantar-se e sentar-se no sofá - o comando à distância.

Hoje, por acaso, estava a dar futebol. Como a restante família, com quem vivo, não gosta de futebol, a não ser que o Benfica perca (aí, passo eu a não gostar, durante o resto do dia) e para evitar, no mínimo, que fosse deserdado, decidi mudar de canal.

O problema é que, na minha cozinha, que serve como "Kitchenette", quando não estamos com pachorra para levar a tralha para outro sítio, não se consegue captar a SIC em condições, porque não há lá tomadas de antena, e a 2,l a essa hora, está a dar desenhos animados... Resultado: à falta de melhor divertimo-nos a observar a negação pura do jornalismo, no canal que sobra.

Hoje, a TVI, para não variar, estava a apontar os mísseis Scud a um dos seus alvos favoritos - a classe médica.

Lembro-me, há tempos, de um estudo feito pelo Prof Fragata, de Santa Marta, que extrapolava grosseiramente um estudo americano para o nosso país, e concluia que 3000 pessoas, todos os anos, morrem por erro médico. Neste contexto, o erro médico pode ter um manancial de causas, abrangendo uma multiplicidade de profissionais de saúde, e não configurando necessariamente negligência.

Para noticiar esse estudo, a SIC e a RTP puseram no título "3000 pessoas morrem em Portugal por negligência médica", enquanto a TVI colocava orgulhosamente, na sua tentativa heróica de levar as notícias as classes menos letradas: "3000 pessoas morrem em Portugal por culpa dos médicos"...


Dá vontade de dizer... "A culpa é sempre do preto, que neste caso é o médico", mas não quero ser politicamente incorrecto hoje... O facto é que, no entanto, esta abordagem dá que pensar.

É devido a esta abordagem que temos, todos os dias, pessoas que, se o avô de 91 anos que tem uma insuficiência cardíaca* do tamanho de umas casas, uma insuficiência renal** com um grau enorme, além de uma diabetes e de uma hipertensão, se lembrou de apanhar uma pneumonia dupla e morre, vão para a TVI, ainda antes de porem o processo no Ministério Público (Título: família pensa em pôr processo a médico do Hospital X), porque, afinal, a culpa é do sacana do médico, que não soube diagnosticar a tempo!

É certo que, durante o curso de medicina, nos é impingida uma cultura de perfeccionismo. Somos educados para não falhar, mas o certo é que, como seres humanos que somos, não podemos evitar certo e determinado tipo de erro, ainda que sob condições de funcionamento "ideais" - ou seja, haver bom ambiente de trabalho e os médicos estarem em condições perfeitas de saúde física e mental .
Claro que, como em tudo na vida, hoje em dia ninguém, é 100% santo (nem os Santos Padres... quanto mais uma classe inteira...) e os erros com negligência, e, até mesmo, com dolo, acontecem.

Por isso, tal como não me parece admissível uma filosofia de encobrimento das situações em que há dolo pela Ordem, também não me parece legítimo,que a sociedadetente procurar culpados à força. Não se tenta perceber porque aconteceu o erro... Quais foram as circunstâncias que o desencadearam. Uma cabeça terá, no fim de tudo, que rolar...

Será que não seria exigível, por parte desta, uma atitude mais proactiva, mais vocacionada para a prevenção do erro?

É por causa deste tipo de atitudes que a medicina, em Portugal, está cada vez mais defensiva. Pedimos todo o tipo de exames, os que interessam e os que, numa primeira abordagem, interessam menos, encarecendo os cuidados e contribuindo para que aumente o tão falado "buraco da saúde".

É por causa deste tipo de atitude que a medicina, em Portugal, está cada vez mais maquinizada. Os doentes já não são o Sr António ou o Sr José, mas o doente da cama 5 ou o homem da hérnia inguinal gigante.

Será que não podíamos ser um pouco mais construtivos?!


PS 1 - Hoje estive o dia todo de "telha"... Um link para compensar, vindo de Olhão, sobre trocadilhos no centro de Saúde, que é um excelente anti-depressivo!

PS 2 - Um abraço a todos os que possam sentir melindrados pelo título... É força de expressão...


Glossário (em português da TVI)

*Insuficiência cardíaca - Coração todo escavacado, que já não consegue fazer o sangue chegar em condições ao terceiro andar...
**Insuficiência renal - Rim feito num oito, que já não produz o suficiente para encher um copo de imperial...
(Ok, nunca mais bebo cerveja...:P)

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