Para muitos, o homem era apenas mais um bêbedo que tinha caído de paraquedas naquela noite de urgência.
Todo ele tresandava a vinho, da cabeça aos pés, passando pelo hálito...
Tinha sido agredido, na colectividade onde costumava passar os tempos livres. Alguém, nessas alturas em que o álcool fala mais alto do que a própria razão, lhe tinha dado com uma garrafa na cabeça. Dessa agressão resultaram dois cortes, incisos, não muito profundos, no couro cabeludo.
Meio estremunhado, devido ao adiantado da hora, fui atendê-lo na pequena cirurgia.
Perguntei-lhe o que se tinha passado, e ele respondeu prontamente. Destapei-lhe a cabeça, que tinha sido vestida com um penso e uma ligadura, pela pessoa que em primeiro lugar lhe prestou assistência.
Seguidamente, comecei a desinfectar a ferida, com solução iodada e comecei a suturar.
Uma das coisas que mais me dá prazer na pequena cirurgia não é suturar. Aliás. corte e costura é algo que eu sempre tive alguma reticência em fazer (no segundo ciclo, a disciplina de Trabalhos Manuais, a par com educação visual e educação física - os três da vida airada - era, sistematicamente, uma das minhas piores disciplinas.)
Aquilo que, de facto, me dá mais prazer na Pequena Cirurgia é falar com as pessoas.
Pergunto-lhes de tudo (Bom, tudo, tudo, não... Não sejam depravados!). Depois do interrogatório estritamente clínico, sai a pergunta sacramental: "então, o que é que faz?", ou "de onde é?". Tenho recebido as respostas mais díspares, e tenho aprendido imenso sobre inúmeros mundos, inúmeras vidas.
Voltando ao assunto do qual estava a falar, perguntei ao senhor o que fazia.
A resposta espantou-me: ele era projectista num cinema.
Sempre considerei a profissão de projectista como uma profissão "mágica". (Não, não vi o "Cinema Paraíso" mais do que uma ou duas vezes... E não, agora que estou em altura de "crise", não estou a considerar que todas as profissões são "mágicas" menos a minha!!!)
Foi então que começámos a falar de cinema. Ele tinha visto, por obrigação profissional, milhentos filmes, nos quase vinte anos que levava de profissão.
Questionei-o sobre qual era o seu filme preferido. Retrucou que era "A Lista de Schindler". Conversámos sobre o filme. Para mim é um filme marcante, pelo facto de abordar o tema do Holocausto, pela forma como está realizado, pela banda sonora (John Williams no seu melhor...). Inevitavelmente, trocámos impressões sobre a criança que, no preto e branco do filme, se destaca com o seu vestido encarnado.
Gradualmente, o enfermeiro que estava de serviço à pequena cirurgia e o polícia que estava de serviço à urgência juntaram-se à discussão.
Passado cerca de meia hora, depois de termos abordado todos os filmes de Spielberg, os do Roberto Benigni e aflorado algumas obras de Monty Python, acabei de suturar.
Ao despedir-me do homem por quem ninguém dava nada, e que me proporcionou uma excelente conversa sobre cinema, a única frase que ecoava na minha mente era uma frase que ouvi num dos filmes da minha vida:
"Look beyond your fingers"
2005/04/10
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