Mãe e filha entraram no consultório de planeamento familiar do centro de Saúde onde agora estou a estagiar.
A miúda pareceu-me um pouco tímida. (O assunto é susceptível de causar algum embaraço... sobretudo quando está uma pessoa do sexo masculino na sala...) Tinha dezassete anos, mas parecia um pouco mais nova.
- Sôtora, queria que a minha filha começasse a tomar o medicamento para não ficar grávida, e que ficasse protegida de doenças sexualmente transmissíveis... porque quer iniciar a vida sexual e... eu sou muito nova para ser avó!!!- disse a mãe.
A mãe aparentava quase ser irmã mais velha. vestida de cores claras, com um piercing no nariz, aparentava um ar jovial e bem disposto... Devia ter quarenta e poucos anos...
A médica fez algumas perguntas, para avaliar eventuais medidas a tomar. Deu-me indicação para pedir umas análises e uma ecografia pélvica, enquanto foi buscar a pílula.
Fez uma breve explanação, em termos acessíveis, sobre o modo de tomar, sobre os possíveis efeitos acessórios (como o spotting) e explicou que o único meio eficaz para proteger o organismo contra doenças sexualmente transmíssiveis é o preservativo. Marcou nova consulta para avaliar como estava a adaptação à pílula.
E despediu-se da rapariga, que sorria, num sorriso tímido que contrastava com o à-vontade da mãe.
Esta mãe é "toda p'rá frentex" - pensei eu.
Por momentos, pensei que estivesse num país "da Europa"... Abstraí-me do facto de o centro de saúde estar inserido num contexto demográfico problemático: pobreza, crime, toxicodependência, prostituição, baixo nível de escolaridade, mães adolescentes... Pensei que o planeamento familiar até funciona...
Ao mesmo tempo, lembrei-me de um caso de uma rapariga de 16 anos, provavelmente de um nível social muito superior, diabética insulino-dependente, que entrou na urgência no estágio de Ginecologia/Obstetrícia, com um aborto em evolução (não provocado, talvez facilitado pela diabetes). Tinha ficado grávida porque tinha vergonha de ir ao centro de saúde pedir a pílula, e vergonha de pedir dinheiro ao namorado para a comprar. Lembrei-me da atitude dos pais dessa rapariga, que a proibiriam de se relacionar com o namorado se soubessem que ela tinha vida sexual activa. Lembrei-me da chamada que fez da urgência, do telemóvel do próprio chefe de equipa. Disse à mãe, com a ingenuidade própria dos 16 anos, que tinha levado "um pontapé na barriga", que tinha "atingido o útero" e ficado "a sangrar". Claro que a mãe não acreditou, e pediu para falar com o chefe de equipa, que lhe disse apenas, e de forma totalmente correcta, que a filha estava informada sobre a situação clínica.
No próprio dia (eu, por acaso, estava de serviço à enfermaria onde ela ficou internada) tinha os pais a discutir e a gritar com ela. O namoro estava terminado.
Não sei o que foi feito dessa rapariga. A única coisa que recordo é que pedi o apoio da pedopsiquiatria. Tratava-se de uma família com uma grande conflitualidade, que poderia beneficiar de apoio nesse âmbito.
Houve muita coisa que talvez tenha falhado neste último caso. Talvez a comunicação entre a médica que a seguia e o centro de saúde, talvez os próprios pais, talvez o próprio círculo social em que ela estivesse inserida...Mas não vou falar sobre isto.
Vou apenas congratular-me com a atitude daquela primeira mãe e com o facto de, para a sua filha, se ter evitado, talvez, com uma gravidez não desejada na adolescência - um problema que é, não apenas médico, não apenas devido à orgânica do Serviço Nacional de Saúde, mas sobretudo social e de mentalidades.
2005/05/12
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