2005/06/27

O novo membro da família

Da porta saiu o som de três pancadas, mais ou menos secas, no intervalo de duas consultas...
-A Sôtora dá licença?
(apeteceu-me perguntar... "Quantos passos?"... mas contive-me!)
- Sim, pode entrar... - disse a minha tutora, em voz alta.

Não sei se, mercê do stress do exame, me lembrei de escrever sobre isso, mas estou, neste momento, a fazer estágio num centro de saúde perto de casa. Estou a ser acolhido de braços abertos, num estágio de três meses, que terminará no fim de Julho...

Tenho, como responsável, uma simpática médica de família...
Só para verem a reputação da mesma, como defensora da causa da Medicina Geral e Familiar, houve um colega mais velho, interno de medicina geral e familiar daquele centro de saúde, que, assim que me viu por lá, e soube que eu estava com aquela médica, vaticinou, com um vozeirão que faria inveja a qualquer Professor Zandinga que se preze: "Mais um clínico geral!!!"

Da porta entreaberta, saiu um homem escanzelado, uma senhora que eu já tinha visto mais gorda e uma filha do casal. Os três estavam com um sorriso que não cabia na face. Traziam, num carrinho, uma bebé com poucos dias de vida.

- Sôtora, vimos apresentar-lhe o mais recente membro da nossa família. É a Leonor.

Sorri. Já tinha visto a senhora na consulta de seguimento da gravidez, no gabinete de Planeamento Familiar, tinha ela quase quarenta semanas. Tinha sido uma gravidez de risco, seguida na Maternidade de referência, por ter havido uns certos problemas durante a mesma, relacionados com hipertensão arterial materna. Contudo, a senhora não quis deixar de ser seguida pela médica de família.

E, felizmente, tinha corrido tudo bem...

A minha tutora pegou na criança com um ar um pouco menos do que maternal, não como médica, mas como amiga de longa data da família.

- Tão bonita que tu és... E tão grande...

Leonor, indiferente aos elogios, esbracejava convictamente. Todo aquele alarido deixara-a estremunhada. Pensava, decerto, que mal tinha ela feito seja a quem fosse para a acordarem daquela maneira...

De repente, dei por mim a pensar no papel ideal do médico de família.
Não é alguém que passa a vida a fazer de psicólogo dos doentes.
É alguém que intervém, de forma proactiva (este vocábulo agora está muito na moda...) na saúde daqueles que lha confiam, antes que a doença se manifeste sequer, através da promovendo a adopção de estilos de vida saudáveis, promovendo o rastreio precoce, intervindo prontamente quando é diagnosticada uma doença ou condição susceptível de provocar doença, ou tendo um papel activo na reabilitação.
Mais do que isso, é alguém que está do lado dos seus utentes em todos os acontecimentos da vida, no nascimento e na morte, na tempestade e na bonança, na saúde e na doença.

Claro que a medicina familiar tem o reverso da medalha: os "pseudo-doentes" e as respectivas "baixas", a sub-utilização da consulta por parte de uns utentes e a hiperutilização por parte de outros, as inúmeras burocracias, as toneladas de papéis para tudo quanto se possa imaginar, as decisões intempestivas tomadas atrás da secretária por chefes cuja competência técnica deixa por vezes muito a desejar, os utentes que reclamam por tudo e por nada, faltando muitas vezes ao respeito a quem quer que seja... e muitas outras coisas mais...

Mas acredito, piamente, que momentos como o que presenciei façam, por breves instantes, esquecer tudo o resto, ainda que, depois das recomendações do costume com o aleitamento e com o puerpério, depois de a porta se fechar, a dança dos papéis, dos doentes e dos pseudo-doentes comece de novo...

PS - O signatário deste berlogue garante que ninguém lhe fez qualquer tipo de lavagem cerebral no âmbito da cadeira de medicina preventiva I. Prova disso é que considera que Medicina Preventiva é a cadeira mais importante do curso. Igualmente, é sua opinião que saber a definição de lixo e a definição de hospital é mais importante saber isso do que saber tratar uma hipertensão, uma insuficiência cardíaca ou um mero ataque de espirros... E, volta a garantir, não lhe fizeram lavagem cereb... Errr... Esqueçam!...

Sem comentários: