Num serviço de internamento, a visita médica é uma reunião, de periodicidade semanal, em que o principal cabeça de cartaz é o Director de Serviço, que é secundado por todos os médicos pertencentes ao mesmo. Consiste na apresentação ao director de um resumo da história clínica do doente, e da sua evolução no internamento. Pode ou não ser feita "à cabeceira do doente" e pode ou não dar azo a discussões mais ou menos interessantes do ponto de vista pedagógico, pode facilitar o reacender ou não de picardias existentes entre os membros "séniores" da equipa médica, ou a que o Director de Serviço ou qualquer um dos médicos "séniores" utilize a visita médica como os patinadores que vemos na televisão utilizam o ringue de gelo: para se exibir.
No serviço onde eu estou colocado, a visita é muito pedagógica (até porque há sempre alunos a assistir) apesar de ter o inconveniente de atrasar de forma completa o trabalho programado para essa manhã. (De facto, começar a observar 15 doentes ao meio dia é completamente diferente de começar a observá-los às 9 da manhã...)
Outra característica é que é realizada à cabeceira do doente, obrigando os médicos a utilizar eufemismos para classificar algumas das respectivas patologias...
Por exemplo, se alguma vez estiverem internados nalgum serviço e ouvirem falar de "suspeita de lesão atípica", no que toca à vossa pessoa, saibam que é de uma suspeita de um tumor maligno que se trata...
Serve todo este paleio para falar sobre o que aconteceu na visita da passada 6ª feira. O Director costuma interpelar directamente os doentes, após ouvir o médico responsável.
Uma das doentes contou uma história muito interessante. Dirigiu-se, casualmente, a um homeopata para curar as alergias.Apesar das suas queixas inespecíficas de cansaço e dores nas costas, o homeopata, através da sua observação, disse-lhe que, de facto, tinha alergias, mas mandou-a fazer uma endoscopia digestiva alta, porque detectava algo no estômago.O que é facto, é que a senhora fez uma endoscopia digestiva alta e foi-lhe diagnosticado um tumor maligno do estômago, chamado adenocarcinoma gástrico, numa fase muito inicial, e portanto, susceptível de cura sem grandes sequelas.É de referir que a maior parte dos adenocarcinomas gástricos são diagnosticados já numa fase muito tardia (porque só tardiamente dão sintomas), o que se traduz numa reduzidíssima sobrevida dos doentes afectados. Por isso, posso dizer que a doente teve imensa sorte.Acho aqui pertinente salientar o menear de cabeça de desaprovação da maior parte da assistência quando se falou em homeopatia, e determinados comentários maldosos que surgiram: "Se calhar, além de homeopata, ele também era bruxo..." - dizia-se entre sorrisos.
Talvez ele fosse "bruxo", mas o certo é que diagnosticou algo que qualquer médico, sem dados laboratoriais ou outros sintomas, e mesmo seguindo o raciocínio clínico de forma irrepreensível, interpretaria como patologia osteo-articular, e medicasse de acordo com isso.
Talvez ele fosse "bruxo", mas agiu como um verdadeiro Médico, encaminhando o doente quando verificou que necessitava de um exame complementar de diagnóstico que caía fora da sua alçada.
Não me parece aceitável a atitude preconizada pelos meus colegas, tal como não me parece aceitável a atitude fundamentalista de muitos pretensos professores de medicinas "alternativa", que fazem lavagem cerebral aos alunos contra a medicina "convencional".Não se deve, como em tudo na vida, cair em bipolarizações ou fundamentalismos de qualquer espécie. Há bons e maus profissionais (ou até mesmo charlatões) em todo o lado.
O importante, para mim, não é o caminho que se toma, mas o atingimento do objectivo final. E o objectivo final é tratar o doente, com honestidade, de forma atempada e eficaz, com o mínimo de efeitos acessórios. Não me interessa que seja cirurgicamente, com fármacos, com xamãs, com homeopatia, com cânticos, com efeito placebo ou seja lá com o que for. Estou-me categoricamente nas tintas, desde que se trate o doente, friso, com honestidade, de forma atempada e eficaz, desde que ele se sinta bem e desde que se respeite um dos princípios defendidos por Hipócrates, e tão esquecidos pela sociedade em que vivemos: "Primum non nocere".
Já agora, outro factor importante é a relação médico-doente. É algo que não se ensina na faculdade, nem se aprende em livros, e que é um quebra-cabeças para gerir com eficácia, porque são necessários vários factores nem sempre atingíveis, a saber, entre muitos outros: a presença de condições de trabalho humanas e materiais óptimas, a ausência de tensões em ambos os intervenientes, a ausência de factores externos à relação que possam interferir, a saúde mental e física do médico...
A melhor relação "médico-doente" que vi em toda a minha vida, e que tomo como modelo, foi em duas pessoas, ex-aequo. A primeira, é meu "médico de família por adopção", e "empurrou-me" para o curso de medicina. A segunda pessoa é... homeopata. Ambos se tornaram, e considero, meus amigos.
Penso que ninguém (ou nenhuma classe) pode ser suficientemente arrogante a ponto de pensar que domina o processo de tratamento de um indivíduo, ou que sabe "tudo" sobre o ser humano, ou sobre a fisiologia e fisiopatologia humanas. Há muito que se desconhece, há muitas coisas que o Homem sabe de forma tradicional e empírica e temos de manter a mente aberta (não podemos fechar os olhos) em relação a isso.
Isto não significa, como é óbvio, que se acredite em palavreados pseudo-científicos sem quaisquer resultados práticos.
Contudo, quando há quaisquer pistas que apontem para resultados práticos, convém fazer estudos imparciais (e sublinho esta palavra) com critérios de inclusão e exclusão de acordo com a filosofia do tratamento em questão (por exemplo, na homeopatia e na medicina tradicional chinesa, as filosofias de diagnóstico são completamente diferentes da filosofia que orienta o diagnóstico médico), de forma a validar e a integrar a filosofia e métodos de diagnóstico e tratamento (como no caso do homeopata que remeteu a doente observada por si, segundo os preceitos homeopáticos, para métodos de diagnóstico e tratamento usados pela "nossa" medicina.)
Convém, igualmente, não nos esquecermos que, até há bem poucos anos, a medicina funcionou sem estudos duplamente cegos, sem conhecimento de mecanismos de acção, mas com resultados.
São esses resultados que podem e devem ser optimizados, se possível com abertura a(em colaboração com) outros profissionais, devidamente preparados na sua área, outros saberes e outras ciências.
Porque acredito que devemos estar todos do mesmo lado: do lado do doente.
2005/03/15
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