A senhora tinha oitenta e oito anos e tinha sido trazida pelo INEM. Vivia sozinha, porque parte da família, talvez em busca de uma vida melhor, tinha atravessado o oceano para ir viver para a América... A outra parte vivia fora de Lisboa, longe da vista e talvez longe do coração...
Os vizinhos, habituados à sua presença nas redondezas, estranharam a sua falta por mais do que um dia. Bateram à porta por algum tempo, e como a senhora não respondia, partiram uma janela e entraram no apartamento.
(Ainda bem que de vez em quando se partem janelas por bons motivos.)
Foram dar com a senhora caída no chão, ligaram o 112, e foi assim que ela foi parar à urgência daquele hospital.
Tinha, segundo dizia, tido uma tontura e caído para o chão, pelo que foi triada para a medicina interna. Tinha, em consequência, feito um traumatismo da região frontal, à esquerda e à direita. (Traduzido para português de Portugal: tinha batido com a testa- e viva os "cromos da medicina" :P)
Por vezes, em caso de traumatismos da cabeça, é pedido o parecer à equipa de cirurgia. Eu estou a fazer, presentemente estágio desta especialidade, e estava de serviço. Como o "banco" estava a ser pouco movimentado, decidi entrar em campo, mesmo sem para tal ter sido formalmente solicitado, antecipando-me assim ao pedido da equipa de medicina, para dar o parecer da cirurgia.
Pedi autorização à colega de medicina, que estava atafulhada em fichas até ao pescoço, e que viu de bom grado a minha intromissão nos seus domínios: adiantaria, decerto, a alta.
Vi o sítio onde tinha batido com a cabeça. Estava tudo bem do ponto de vista cirúrgico. Não havia qualquer sinal de ferida que necessitasse de sutura. Apenas umas equimoses bastante pronunciadas. (Ou, em português daqui do sítio, umas "nódoas negras grandes como o raio")
Fiz-lhe o exame neurológico sumário que se faz aos doentes com traumatismo da cabeça. Estava tudo óptimo.
Expliquei-lhe com um sorriso que, do ponto de vista cirúrgico, não havia qualquer problema.Disse-lhe que seria vista pela colega de Medicina Interna, para que esta lhe desse a devida orientação do ponto de vista cardiológico (para a consulta, por exemplo, após excluir que não havia nada que inspirasse cuidados imediatos.), orientação essa que eu não poderia dar, por mais que quisesse.
- O senhor é um charme! - disse a senhora, com indubitável ternura, após a explicação.
- Desculpe?! - retorqui eu, mais do que surpreso com a tirada repentina.
- Em oitenta e oito anos de vida, nunca vi um jovem com tanto charme!!!
Não consegui esconder o sorriso embevecido que surgiu na minha face.
Tamanho elogio deixou-me meio atrapalhado, mesmo dando o devido desconto pelo facto de a senhora ter batido com a cabeça uns dias antes (vim eu a saber depois, falando com o maqueiro que a trouxe... facto que per si lhe retirava a indicação para ser por mim observada.)
Foi, por isso, com o mesmo sorriso atrapalhado, lhe agradeci o elogio, enquanto "estacionava" a sua cadeira de rodas, a fim de ser observada pela colega.
Fui a sorrir para a sala dos médicos, e sorri o resto do dia todo, mesmo estando fisica e psicologicamente cansado (quando estou cansado, por vezes fico com o mau feitio...)
Não sei o desenlace da história, infelizmente, no que à senhora respeita. Mas uma coisa é certa: nos instantes em que os caminhos daquela senhora se cruzaram com os meus, ganhei muito mais do que aquilo que o hospital me paga no fim do mês pelo "banco"...
PS - Só uma nota, para quem não sabe o que é medicina interna: os internistas são os verdadeiros "sinhôres" dos hospitais. Sabem, por exemplo, sobre doença cardíaca, por vezes, mais do que qualquer cardiologista que se preze... É uma das especialidades mais completas da profissão médica, mas, infelizmente, também uma das mais mal tratadas...
2005/03/07
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